domingo, 27 de outubro de 2013

ATERRORIZANTE, O TAL DE DNA!



O jornalista Sam Kean colabora nos periódicos "Science", "New York Times", "Slate" e "Mental Floss" e é autor de "A Colher que Desaparece", finalista do prêmio de melhor escritor de ciência concedido pela National Association of Science em 2009.
Leia abaixo um trecho d`"O Polegar do Violinista" disponibilizado pelo jornal Folha de São Paulo:



SUBJACENTE A MEU ENTUSIASMO, porém, encontra-se o outro lado dos genes: o medo. Enquanto pesquisava para escrever este livro, submeti meu DNA a um serviço de teste genético. Apesar do preço (US$ 414), fiz isso com um estado de espírito leviano. Sabia que testes de DNA apresentam sérias falhas, e, mesmo quando a ciência é sólida, em geral não ajudam muito. Pelo meu DNA, sei que tenho olhos verdes, mas para isso disponho de um espelho. Descubro que não metabolizo bem a cafeína, mas já passei muitas noites agitadas depois de uma Coca-Cola ingerida tarde da noite. Além disso, foi difícil levar o processo de teste de DNA a sério. Recebi pelo correio um frasco de plástico com uma tampa cor de laranja, e as instruções me diziam para massagear as bochechas com as juntas dos dedos para soltar algumas células na boca. Depois tive de escarrar no tubo várias vezes até encher dois terços dele com saliva. Isso demorou dez minutos, pois as instruções diziam, com toda a seriedade, que não servia qualquer saliva. Teria de ser coisa boa, espessa como um xarope; assim como cerveja tirada da torneira, não podia ter muita espuma. No dia seguinte enviei minha cusparada genética pelo correio, esperando alguma agradável surpresa a respeito de meus ancestrais. Não me envolvi em nenhuma reflexão sombria até chegar a hora de registrar meu teste on-line e ler as instruções e algumas informações assustadoras. Se sua família tiver um histórico de câncer de mama, Alzheimer ou outras doenças - ou se o simples pensamento de sofrer essas doenças o assusta -, o serviço de teste permite que você bloqueie essa informação. É possível ticar uma caixa para mantê-la em segredo até de você mesmo. O que me pegou de surpresa foi a caixa para doença de Parkinson. Uma de minhas primeiras lembranças, e certamente a pior, é de estar no corredor da casa de minha avó e enfiar a cabeça na porta do quarto onde meu avô viveu seus últimos dias, abatido pela doença de Parkinson.
Quando eu era menino, as pessoas sempre diziam quanto meu pai era parecido com meu avô - e ouvi comentários semelhantes sobre ser parecido com o meu velho. Por isso, quando espiei aquele quarto do corredor e vi uma versão de cabelos brancos do meu pai estirado numa cama com grade de segurança, enxerguei uma projeção de mim mesmo. Lembro de muitas coisas brancas - as paredes, o tapete, os lençóis, o avental aberto atrás que ele usava. Lembro de meu avô inclinado para a frente a ponto de quase cair, o avental solto como uma franja branca.

Não sei se meu avô me viu, mas, quando vacilei à porta, ele gemeu, e eu comecei a tremer, o que fez a voz dele falhar. De certa forma, meu avô teve sorte por minha avó ser enfermeira e cuidar dele em casa, e de os filhos o visitarem com regularidade. Mas ele regrediu física e mentalmente. Minha lembrança mais vívida é o fio de saliva espessa como calda pendurada de seu queixo, cheio de DNA. Eu tinha uns cinco anos, era novo demais para entender. Até hoje sinto vergonha de ter fugido às pressas.
Agora, pessoas estranhas - e pior, eu mesmo - poderiam ver se a cadeia de moléculas reprodutivas que poderiam ter disparado o Parkinson no meu avô estava à espreita nas minhas células. Havia boa chance em contrário. Os genes do meu avô foram diluídos em Gene, cujos genes por sua vez tinham sido diluídos em mim por Jean. Mas também havia uma possibilidade real. Eu poderia encarar um câncer ou outras doenças degenerativas às quais eu pudesse ser suscetível. Mas não Parkinson. Apaguei aquela informação.

Histórias pessoais como essa fazem parte da genética, tanto quanto seus empolgantes relatos - talvez até mais, pois todos temos ao menos uma dessas histórias soterradas em nós. Esta é a razão deste livro: além de relatar as narrativas históricas, refletir sobre essas narrativas e relacioná-las com o trabalho realizado hoje com o DNA e com o que será feito no futuro. Essas pesquisas genéticas e as mudanças delas decorrentes foram comparadas a uma alteração na maré oceânica, grande e inevitável. Mas suas consequências chegarão à praia onde estamos não como um tsunami, mas em minúsculas ondas. São as marolas individuais que iremos sentir, uma a uma, quando a maré chegar à praia - não importa se pensamos que ainda estamos distantes dela.
Contudo, nós podemos nos preparar para essa chegada. Como reconhecem alguns cientistas, a história do DNA substituiu as antigas aulas sobre a civilização ocidental como a grande narrativa da existência humana. A compreensão do DNA pode nos ajudar a entender de onde viemos e como nosso corpo e nossa mente funcionam; entender os limites do DNA também nos ajuda a conhecer como nosso corpo e nossa mente não funcionam. No mesmo sentido, teremos de nos preparar para tudo que o DNA disser (e não disser) sobre problemas sociais intratáveis, como relações de gênero e raça, ou se características como agressividade e inteligência são fixas ou variáveis. Também devemos decidir se confiamos em ansiosos pensadores que, mesmo reconhecendo que não entendemos completamente como o DNA funciona, já falam sobre oportunidades, ou até a obrigação, de incrementar nossos 4 bilhões de anos de biologia. Desse ponto de vista, a história mais notável sobre o DNA é que nossa espécie sobreviveu tempo suficiente para (potencialmente) dominá-lo.
A história que há neste livro ainda está sendo construída. O polegar do violinista foi estruturado de maneira que cada capítulo comece no remoto passado microbial, passe para nossos ancestrais animais, paire sobre primatas e concorrentes hominídeos, como o homem de Neandertal, e culmine com o surgimento dos seres humanos modernos e cultos, com sua linguagem florescente e seus cérebros hipertrofiados. Contudo, à medida que o livro avança, veremos que as questões ainda não estão totalmente resolvidas. As coisas ainda são incertas - em especial o problema de como vai acabar esse grande experimento de desenterrar tudo que há para saber sobre o nosso DNA.

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