segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

SE CIDADE É SÓ UMA COLÔNIA DE SERES VIVOS, PREFEITO PARA QUE?

"Poucos teóricos da física ajudaram a resolver um antigo impasse da biologia. Poucos teóricos da física são como Geoffrey West”, escreveu Murray Gell-Mann, ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1969, para apresentar seu colega na edição das 100 pessoas mais influentes do mundo de 2006, da revista americana Time. 
West - foto - formulou a lei que relaciona o peso de animais, seu consumo de energia, frequência cardíaca e longevidade. Consagrado na biologia, estendeu suas conclusões ao urbanismo. 
Para ele, a evolução aparentemente caótica das cidades segue uma lógica universal. 
West esteve em São Paulo para um debate no ciclo 
Fronteiras do pensamento.

ÉPOCA – Cidades são uma colônia de seres vivos e portanto se comportam, em larga escala, de maneira semelhante a esses seres vivos – essa é sua proposta de maneira resumida. Como funciona esse paralelo?
Geoffrey West – Uso conceitos da biologia para tentar entender grandes questões das cidades. Cidades, a exemplo de mamíferos, são um conjunto de células ligadas por sistemas de circulação de informações e recursos. Cada cidadão é uma célula, incapaz de viver longe do organismo. Cidades consomem energia, processam informações, transformam recursos, crescem e se adaptam a diferentes condições. Animais e cidades grandes têm ganhos de escala numa proporção bastante semelhante. Um mamífero de 200 quilos consome 75% mais energia do que outro com 100 quilos, embora seja 100% maior. Há um ganho de eficiência de 25%. As cidades experimentam um ganho de escala da ordem de 15%: uma cidade de 200 mil habitantes consome 85% mais do que uma cidade com 100 mil. Ao mesmo tempo, a frequência cardíaca dos mamíferos e a fluidez do trânsito de uma metrópole diminuem, em proporção semelhante, conforme o crescimento do organismo.

ÉPOCA – O senhor faz uma afirmativa ousada, de que as cidades são mais produtivas conforme o tamanho de sua população, sem considerar outras variáveis.
West – Em linhas gerais, sim. Na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, cidades de mesmo tamanho têm quantidade semelhante de ruas asfaltadas, registros de patente e assaltos. E, cada vez que a população cresce 100%, a demanda por infraestutura cresce apenas 85%. Tudo o que tem a ver com interação social nas cidades tende a ganhar eficiência nessa razão de 15% – ora um pouco abaixo, ora um pouco acima, mas sempre em torno dessa tendência. A regra vale para atividades com consequências desejáveis, como a produção de riqueza e o registro de patentes, ou indesejáveis, como tráfico de drogas e sequestros.

ÉPOCA – Como o senhor aplica, no estudo das cidades, essa relação entre população e desempenho?
West – Ao traçar uma curva de desempenho esperado em função da população, conseguimos enxergar mais claramente os casos de gestão que vale a pena observar. Muitas cidades são indevidamente tomadas como exemplos. Podem estar abaixo de seu potencial (em relação a seu tamanho), apesar de ter bons números absolutos. 

ÉPOCA – Que mitos sua pesquisa derruba?
West – A cidade mais inovadora dos Estados Unidos é quase desconhecida. Chama-se Corvallis, no Estado do Oregon. Ela tem mais patentes per capita, em função de seu tamanho, do que o Vale do Silício, na Califórnia.

ÉPOCA – O que explica o bom desempenho de Corvallis na produção de ideias?
West – Corvallis tem um campus da Universidade de Oregon e um centro de pesquisas da HP. São ambientes favoráveis a inovação, mas não exatamente centros de excelência capazes de explicar, sozinhos, o bom desempenho da cidade. O próprio desempenho de San José, na Califórnia, não se explica pelo polo tecnológico do Vale do Silício. O sucesso dessa cidade no registro de patentes é anterior. É preciso cavar mais fundo para saber a razão.

ÉPOCA – O que faz o desempenho das cidades se desviar da curva de expectativa?
West – A cultura do país exerce forte influência em certos aspectos. Nova York tem mais tiroteios do que Tóquio, uma cidade muito mais populosa. Diferentemente do Japão, os Estados Unidos são uma estranha civilização moderna em que pessoas podem portar armas e atirar umas nas outras. Outro aspecto importante para entender uma cidade é avaliar sua vizinhança.

ÉPOCA – Niterói tem o melhor Índice de Desenvolvimento Humano do Estado do Rio de Janeiro, em parte por funcionar como dormitório para trabalhadores da capital. Não dá para entender Niterói sem olhar para o Rio.
West – Exatamente. Em muitos casos, a cidade é meramente uma fronteira administrativa. San Francisco, na Califórnia, tem apenas 800 mil moradores. Sua importância econômica decorre da região metropolitana, com 4 milhões de habitantes. É a cabeça de um corpo. A rede de conexões entre cidades é tão importante quanto a rede de conexões dentro da cidade.

ÉPOCA – Cidades com mancha urbana dispersa são menos produtivas do que cidades densas?
West – São. O espalhamento urbano é um problema em boa parte dos Estados Unidos. Ele minimiza os efeitos da interação social, como a troca de ideias.

ÉPOCA – Faz sentido governar isoladamente cidades que cresceram a ponto de colar em suas vizinhas?
West – Muitas cidades se agarram a fronteiras criadas 
artificialmente, séculos atrás, que não fazem mais nenhum sentido. As cidades deveriam se empenhar em rever e integrar jurisdições e fronteiras. É uma tarefa difícil, se não impossível, por envolver interesses estabelecidos. Londres, na Inglaterra, está fazendo um bom trabalho nessa direção. Detroit, nos Estados Unidos, é o exemplo negativo. O espaço central, onde originalmente era a cidade, não tem mais fontes de arrecadação suficientes. Os contribuintes migraram para os subúrbios. Detroit declarou falência, enquanto cidades vizinhas estão crescendo. Deveriam atuar juntas. A falta de integração formal atrasará, mas não impedirá, o renascimento de Detroit movido pelo crescimento das cidades vizinhas.

ÉPOCA – O senhor afirma que o desempenho das cidades é consequência do tamanho populacional, com influência da cultura do país e do grau de integração entre moradores e entre municípios. Qual o papel dos prefeitos?
West – A importância do prefeito é menor do que costumamos crer. É óbvio que o gestor influencia os rumos da cidade ao criar leis e dispor de um orçamento. Mas sua influência é de, digamos, 15%. Cerca de 85% do resultado final depende de como a população reage ao ambiente e às regras. Gosto de ilustrar essa afirmação com um exemplo simples: um prefeito constrói uma praça com gramado e passarela de pedestres. Um ou outro morador decide tomar um caminho mais curto, por cima da grama. Conforme a trilha se torna uma clareira, passa a ser usada por mais e mais moradores. As cidades ganham forma pela interação entre governo e cidadãos. Por leis que pegam ou não pegam e por iniciativas que passam abaixo do radar dos governos.

ÉPOCA – Como capitais planejadas, como Brasília, se comportam em relação a cidades do mesmo porte?
West – Gostaria de ter um bom levantamento de dados sobre as cidades brasileiras, nos últimos 50 anos, para ter certeza. Aposto que, nas primeiras décadas, a eficiência de Brasília devia se descolar muito de cidades comparáveis em população e nível de renda. Cidades planejadas são inorgânicas. Leva tempo até ser aperfeiçoadas pelo uso dos moradores. Essa é a história de quase todas as cidades projetadas. Washington, nos Estados Unidos, era um desastre como lugar para morar. Tornou-se uma tremenda cidade.

ÉPOCA – Faz lembrar navios naufragados e recifes artificiais, que só depois de alguns anos no fundo do mar são colonizados pela vida marinha.
West – É uma boa analogia. O navio é um corpo estranho, até seres vivos se adaptarem a ele. Cidades são orgânicas. Num nível profundo, evoluem e se adaptam, o que torna extremamente difícil entender e lidar com elas. É difícil acreditar que, na aparente bagunça de São Paulo, há na verdade alguma ordem. Mas ela existe. É empolgante constatar que a evolução orgânica das cidades, caótica quando vista de perto, segue uma tendência previsível, de simplicidade extraordinária. Constatar que populações distantes obtêm ganhos de escala parecidos com iniciativas diferentes. Prefeitos e gestores deveriam entender essa mão invisível que conduz a evolução das cidades e tentar conduzi-las a seu favor, em vez de bater de frente com ela.

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