sexta-feira, 23 de outubro de 2015

RECÉM-NASCIDO: ABANDONO DA MÃE OU DO ESTADO?

Eudes Quintino de Oliveira Júnior, no Migalhas
Toda pessoa tem o direito de conhecer sua origem, seu patrimônio genético, seus dados biológicos.
Noticiou a imprensa, com repercussão em todo país, que uma mãe, com 37 anos de idade, no bairro Higienópolis, em São Paulo, escondeu sua gravidez da patroa, com receio de perder o emprego, e teve o bebê no quarto que ocupava no apartamento. Dois dias após, acomodou a criança em uma sacola e a deixou na calçada, ao pé de uma árvore, onde foi encontrada e encaminhada para o atendimento médico, realizado com sucesso. A mãe, que já tem uma filha de três anos, vai responder pelo crime de exposição ou abandono de recém-nascido.
É até comum ouvir notícia relatando tal lastimável abandono e a reação das pessoas é quase sempre no sentido de censurar a mãe pelo descaso com a vida do recém-nascido. Mas é muito difícil estabelecer e até mesmo compreender os motivos que a levaram a tomar tão odiosa conduta.
Mas, mesmo assim, fechando um raciocínio jurídico em torno da questão, percebe-se que, quando grávida, não optou pelo aborto. Nem mesmo pelo infanticídio, quando se encontrava sob a influência do estado puerperal. Não se pode concluir, portanto, que não desejasse o nascimento do filho, uma vez que venceu todas as etapas, desde a concepção até o nascimento com vida. Passou, com certeza, por inúmeras dificuldades, tanto sociais, econômicas e até mesmo o abandono do pai da criança, mas, mesmo assim, proporcionou o nascimento da filha. E se fosse possível penetrar em seu interior para desvendar a sua vontade, acredito que a única resposta seria que alguém encontrasse o bebê e desse a ele a necessária acolhida.
Fatos como este são reprisados em todo país e há muito tempo reclamam um espaço para debater a implantação de políticas públicas que sejam minimizadoras de situação tão delicada. A questão não é processar a mãe em busca de um édito condenatório e sentir que a Justiça foi feita. O problema penal ocupa a menor fatia do imbróglio social, e deve-se levar em consideração sim o despreparo para a maternidade, a preocupação em ocultar a desonra própria e até mesmo eventual consequência financeira, como a demissão do emprego. A pena a ser aplicada é de seis meses a dois anos de detenção e a persecução penal será feita perante os Juizados Especiais Criminais, de acordo com o artigo 61 da lei 9.099/1995.
Ora, o que exige o Código Penal é que, além de ter a mulher agido com a intenção de ocultar a desonra própria, provoque a ocorrência do perigo concreto para o neonato, não bastando a mera presunção do risco. E vai ao encontro da defesa da mãe o fato de ter-se colocado bem próxima do local para observar se a criança seria resgatada por pessoa que transmitisse confiança, demonstrando, desta forma, a prática de medida acautelatória para evitar qualquer perigo a ela.
Visando proporcionar uma solução mais humana para os casos de abandono de recém-nascido, tramitou pela Câmara Federal um projeto de lei a respeito dos direitos reprodutivos das mulheres, criando a figura do parto anônimo. Garante à mulher grávida, que não deseja a criança, o atendimento pré-natal e o parto, ambos gratuitamente. Assim como o filho será deixado no hospital ou posto de saúde por determinado prazo, período em que poderá ser reivindicado por ela ou por qualquer parente biológico. Findo o período, a criança será encaminhada à adoção. A parturiente que optou pela entrega do filho será submetida a acompanhamento psicológico, isenta de qualquer responsabilidade civil ou criminal em relação ao filho e sua identidade. As informações a respeito de sua saúde e a do genitor serão mantidas e divulgadas somente por ordem judicial fundamentada.
A incongruência do projeto residiu justamente no sigilo de identidade da mãe que impossibilita ao filho o conhecimento de sua origem genética. Dentre todos os direitos elencados na Constituição Federal, um deles assume relevância no assunto ora debatido: o da dignidade da pessoa humana. Toda pessoa tem o direito de conhecer sua origem, seu patrimônio genético, seus dados biológicos. Tanto é que o artigo 48 do Estatuto da Infância e Juventude determina: "O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos". Ao inserir tal direito, derivado do princípio da dignidade da pessoa humana, o legislador não ofertou condição para o filho fazer uma escolha futura com relação à filiação, mas sim para que conheça o sua identificação genética.
De lege ferenda, por se tratar de adoção, poderia ser proposto novo projeto no sentido de preservar a nomeação dos responsáveis pela identidade genética, para depois providenciar a substituição registral, lançando os nomes dos pretendentes no registro de nascimento da criança, vez que será cancelado o anterior e nenhuma observação ficará constando.
Desta forma, dá-se segurança maior à gestante que já carrega a intenção de entregar o filho à adoção, com a efetiva proteção estatal. Receberá atendimento pré-natal, com todos os acompanhamentos necessários para a realização do parto, assim como o acompanhamento psicológico e não arcará com qualquer responsabilidade civil ou criminal com relação ao filho, que será registrado em seu nome.


Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, Reitor da Unorp/São José do Rio Preto.


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