sexta-feira, 23 de outubro de 2015

VIEMOS DO MAR?

Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.
Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra.
Não, não; não é isso o que vos digo.
Vós virais os olhos para os matos e para o sertão?
Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar.
Cuidais que só os tapuias se comem uns aos outros, muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos.
Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas, vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação, nem sossego?
Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer, e como se hão de comer.
Morreu algum deles? 
Vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo, e comê-lo.
Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores, comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes, come-o o médico que o curou ou ajudou a morrer, come-o o sangrador que lhe tirou o sangue, come-o a mesma mulher que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa, come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda ao pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento.
Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós.
Vivo estava Jó, quando dizia: - Por que me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?
Quereis ver um Jó destes?
Vede um homem desses, que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo.
Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, e já está comido.
São piores os homens que os corvos.
O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.  

- (ibidem. à postagem anterior)   
 

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