sábado, 30 de maio de 2015

AH, AS FORMIGAS...

Seu nome verdadeiro era  Samuel Langhorne Clemens, mas utilizava o pseudônimo Mark Twain e com este nome tornou-se mundialmente conhecido.
Entre outras coisas, escreveu "As Aventuras de Tom Sawyer", em 1876; oito anos mais tarde, "As Aventuras de Huckleberry Finn" e cinco anos depois, em 1889, "O Príncipe e o Mendigo".
O texto a seguir, concernente às formigas, acha-se inserido em "A Tramp Abroad", escrito por ele em 1880, que foi condensado pela revista Reader`s Digest em publicação de 1943, tendo como título "Dona Formiga, a Fraudulenta".
Foi uma completa desmistificação feita sobre esse inseto tido como exemplo de trabalho.

"Nessa história da inteligência das formigas, quer-me parecer que corroem por aí juízos bastante exagerados.
Tenho passado muito estio a observar formigueiros (à falta de melhor e mais rendosa ocupação) e, com franqueza, até hoje ainda me não caiu debaixo da lupa uma formiga viva que me parecesse mais esperta do que qualquer outra em estado de cadáver.
Refiro-me, bem entendido, à  formiguinha vulgar: porque, no que respeita às decantadas formigas suíças, africanas e outras, que exercem o sagrado direito do voto, organizam aguerridos exércitos, praticam a escravatura e travam debates teológicos, a minha experiência é francamente nula.
Admito que essas formigas sejam tudo quanto delas nos referem os naturalistas amigos dos animais nossos inimigos: mas a formiga, tal qual nós, tristes mortais, a conhecemos, a formiga banal, essa é uma autêntica paçoca!
Não lhe nego o caráter industrioso; é por excelência o bicho laborioso...quando sabe que alguém a está observando; mas é precisamente da sua teimosia, da sua obstinação, que eu faço meu cavalo-de-batalha contra o inseto querido dos fabulistas e dos moralistas.
Sai a formiga por esse mundo em busca do sustento, encontra a sua presa, e que faz ela?
Volta para casa? Não senhor. Pois se nem sequer sabe onde mora!
Pode ser que o formigueiro fique logo ali ao voltar da esquina, a três pés (humanos) de distância: nem assim ela consegue dar com ele.
A sua presa é em geral qualquer coisa que não tem préstimo nenhum, nem para a formiga nem para mais ninguém: é quase sempre sete vezes maior do que seria razoável; a formiga procura o sítio mais absurdo para se apoderar dela; ergue-a no ar à força de braço, e rompe a marcha - não para casa, mas em sentido exatamente oposto; não com calma e prudência, mas com pressa e frenesi: se esbarra com um calhau, em vez de o rodear põe-se a trepá-lo, e aos trancos, arrastando o botim, até se despenhar do lado oposto; aí, ergue-se de repelão, limpa-se da poeira, cospe nas mãos, deita a unha raivosa à sua posse, dá-lhe safanão para a direita e para a esquerda, e lá vai, ora empurrando o fardo a sua frente, ora rebocando-o com desespero, até que, na sua fúria crescente, acaba por perder a cabeça, ergue a presa no ar, e desata a correr perdidamente, numa direção completamente diferente.
Ao cabo de meia hora deste corpo-a-corpo insano, dá consigo outra vez a seis polegadas do ponto por onde começou, e depõe, gemendo, o fardo. Detém-se, limpa o suor da fronte, lambe-se e alisa os membros, e desata outra vez a correr sem destino, com tanta pressa e veemência como há pouco.
Percorre assim um vasto território, aos ziguezagues, e mais tarde ou mais cedo volta a dar de cara com o botim que abandonara. E quando a gente julga que ela o reconhece e lhe vai voltar costas, - não senhor: olha em volta como se procurasse ter bem a certeza de que não é o caminho de casa, deita mão da carga, e aí vai largada, a repetir os mesmos passos que já deu, as mesmas cegas aventuras.   
Até que, por fim, se detém, e lá aparece uma colega marchando ao encontro dela. Ainda bem! Torna-se logo evidente que, na opinião da recém-chegada, uma perna de gafanhoto do ano passado é uma presa de transcendente importância: e a segunda formiga mete-se resolutamente a ajudar a primeira, para carregarem o presunto até casa.
Agarram cada qual numa extremidade da coisa, e desatam a puxar com todas as forças... em sentidos opostos!
Ao fim de alguns minutos de improfícuos esforços, decidem repousar e conferenciar.
Decididamente, há ali qualquer coisa que não marcha. Mas não conseguem saber o que seja, e rompem a acusar-se mutuamente de obstrucionismo. A discussão azeda-se e acaba nas vias-de- fato: atiram-se uma à outra, e durante alguns instantes ferve a dentada e o soco, rolam e esperneiam no chão; até que uma delas morde o pó, com uma perna partida ou uma antena arrancada, e deserta a liça para se ir curar das feridas... Mas não tarda que estejam reconciliadas, e voltam à estacada, aos mesmos esforços insanos e vãos; é evidente, porém, que a formiga estropiada sofre desvantagem: por muito que ela puxe, fincando as garras no chão, a outra arrasta vitoriosamente a presa - e a companheira agarrada a ela.
O tempo corre, e depois de muito arrastar e empurrar (sempre sem sair do mesmo terreno)o presunto é finalmente abandonado, coisa curiosa, sensivelmente no mesmo ponto onde fora encontrado.
As duas formigas, alagadas em suor e anelantes, inspecionam-na minuciosamente, e acabam decidindo que perna seca de gafanhoto, no fim de contas, é coisa de pouca monta, e cada uma delas se aparta dali em sentidos opostos, a ver se não poderiam encontrar qualquer outra coisa, bastante pesada e suficientemente insignificante para que uma formiga a possa considerar bom entretenimento e deseje possuí-la com todas as veras do seu coração...
Hoje mesmo vi eu uma formiga executar todos os passos acima descritos: só que, em vez de presunto seco de gafanhoto, o que carregava era uma aranha morta, bem sete vezes mais pesada que ela própria; acabou naturalmente por abandonar a carga em pleno pó da estrada, para que outra formiga, não menos cabeçuda, pudesse ser tentada a apresá-la.
Tive a paciência de medir o terreno que a asna ( com perdão dos anos) percorreu, e cheguei à conclusão de que o esforço que ela realizara durante vinte minutos, equivalia pouco mais ou menos ao seguinte por parte de um homem, a saber: amarrar juntamente dois cavalos de uns 400 quilos cada um, arrastá-los meio quilômetro pelo chão, galgando obstáculos (em vez de rodeá-los) tais como diques com a altura de 1,80 metros, e no decurso da tarefa trepar um precipício da altura do Niágara, e saltar lá de cima; repetir esta façanha com três altos campanários de igreja; e finalmente abandonar os dois cavalos por terra, num lugar descoberto, sem ninguém a olhar por eles.
A ciência verificou já que a formiga, tal qual a cigarra, não armazena coisíssima nenhuma para seu sustento durante o inverno; é uma impostora que não trabalha senão quando se sente observada, e o será provavelmente por algum entomologista crédulo, isto é, um sujeito ingênuo, pasmado e cheio de boas intenções, que se arrasta de joelhos e toma notas num caderninho...
A formiga, se encontra um toco na sua frente, não sabe evitá-lo; não é capaz de encontrar o caminho de casa; o que, bem ponderado, equivale ao mais completo cretinismo.
Sua tão decantada indústria não passa de vã palavra, já que a formiga nunca consegue chegar a casa levando consigo aquilo que laboriosamente se esforçou por arrastar.
Este fato derruba a última coluna da que lhe sustentava a lendária reputação, e arruína por completo o seu mérito e utilidade como exemplo favorito de moralistas.
Como é que a formiga, essa grande peta dos fabulistas e entomologistas, conseguiu por tantos séculos burlar tantas nações, sem que ninguém tivesse jamais ousado ou sabido desmascará-la, eis um enigma que, por mais voltas que eu lhe dê, não consigo esclarecer: ultrapassa com toda certeza o meu poder de compreensão."

QUEM SE HABILITARIA A CONTESTAR MARK TWAIN?

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