terça-feira, 13 de outubro de 2015

BONNE NUIT, M. FOUCAULT

Talvez um dia já não saibamos bem o que foi a loucura. 
O seu rosto ter-se-á fechado sobre si mesmo não mais permitindo decifrar os rastos que deixou. 
E, ao olhar ignorante, os próprios rastos conseguirão ser mais do que simples marcas negras? 
Quando muito farão parte de configurações que agora não saberíamos desenhar mas no futuro serão códigos indispensáveis para nos tornarmos legíveis, nós e a nossa cultura. 
As nevroses pertencerão às formas constituintes (e não aos desvios) da nossa sociedade. 
Tudo o que hoje sentimos sobre a forma do limite, ou do estranho, ou do insuportável, ter-se-á reunido à serenidade do positivo. 
E o que para nós designa atualmente este Exterior arrisca-se um dia a designar-se a nós.
Apenas sobrará o enigma desta Exterioridade. 
Perguntar-se-á, então, que estranha delimitação era essa que interveio desde o mais fundo da Idade Média até ao Séc. XX e, quem sabe, se além dele. 
Por que rejeitou a cultura ocidental, desde os primórdios, aquilo que ela própria teria podido tão bem reconhecer-se – ou se reconheceu, de fato, de uma forma oblíqua? 
Por que teria, claramente desde o Séc. XIX mas na verdade desde a idade clássica, afirmado que a loucura era a desnuda verdade do homem e, apesar disso, a colocou num espaço neutralizado e pálido em que surgia como que anulada? 
Por que recolheu as palavras de Nerval e Artaud, por que se reencontrou nelas e não neles?
Assim se há-de vergar a viva imagem da razão em fogo. 
Esse jogo tão familiar que é olharmos para o outro extremo de nós na loucura e pormo-nos à escuta de vozes que, chegadas de tão longe, de perto nos dizem o que somos; esse jogo com as suas regras, táticas, invenções, artimanhas, toleradas ilegalidades, já não passará de um ritual complexo cujos significados terão sido reduzidos a cinza. 
Qualquer coisa como a atenção ambígua que a razão grega dispensava aos seus oráculos. 
Ou ainda como essa instituição gêmea, desde o Séc. XIV cristão, das práticas e dos processos de feitiçaria. 
Nas mãos das culturas históricas não sobrará mais do que as medidas codificadas do internamento, as técnicas da medicina e, por outro lado, a inclusão súbita, irruptiva, da palavra dos banidos na nossa linguagem.
michel foucault

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