terça-feira, 15 de abril de 2014

KIKIKIKIKIKIKI...

As pessoinhas de hoje acham que nós, os velhos, nunca fomos crianças na vida.
Se fomos!
A diferença é que sempre tivemos um PAI PRESENTE, ali, com a cinta na mão para coibir qualquer deslize nosso.
Lembro de uma vez...

" Eu devia ter uns nove anos.
Morava com minha avó na Rua Governador Pedro de Toledo, 500. Naquele dia, antes do almoço, quando ninguém me viu, fui para a rua, decidida a fazer umaperaltice.
Não que eu tivesse esse costume, mas achei que a primeira coisa que aparecesse eu faria naquele sábado.
É que eu não gostava do sábado.
Era no sábado que meu pai me buscava na casa de minha avó para levar de volta ao sítio.
Dizia assim: - “Onde já se viu filha viver longe da mãe e das irmãs a semana inteira?”.
Pois bem.
Achei que ele não viria nesse dia, pois já passava das dez horas. O máximo em que ele aparecia era lá pelas oito da manhã.
Minha avó principiando a fazer o almoço, com os cabelos para o alto num coque, as mangas da blusa já arregaçadas, as panelas brilhando de tanto que ela as areava, a Escolástica ajudando... Como era bonitinha a Escolástica!
Bonitinha e cheirosinha, a mãe da Tereza e do João Caetano.
Foi quando vi aquele caminhão.
Passava tão devagarinho, tão convidativo, que decidi: iria pegar uma carona na rabeira nele.
Carona para lugar nenhum!
Não imaginei que alguém pudesse ver-me pendurada ali.
Quem sabe, no mínimo, iria até a esquina ou no máximo desceria na curva da Rua 7 de Setembro, hoje, Cônego Francisco Ribeiro em demanda à Praça da Matriz.
Só Deus sabe o que eu faria.
Agarrada ao ferro da traseira do caminhão, o pensamento era só um: esconder meu rosto com as mangas compridas da blusa azul. Assim, ninguém me reconheceria...
Foi quando, num relance, cruzei com meu pai na escadaria do casarão dos Válio, que não existe mais, e onde hoje se vê aquele prédio horroroso da Caixa Econômica do Estado de São Paulo. Nessa época, quem morava nele era meu tio Aristeu, pai do Júnior, do músico Chico Válio, da Irani, da Zezé, da Ceci, avô do Franco Carlos.
E meu pai, que eu nem sabia que já havia chegado, acabou me vendo também, ele que confabulava com meu tio.
Disse adeus à rabeira do caminhão e pus-me a correr de volta à casa de minha avó.
Coração na boca.
Só via meu pai vindo atrás de mim, como um louco, já tirando a cinta pela rua.
Meu coração em disparada.
Confiei em minha avó que jamais deixou que alguém esbarrasse um dedo sequer em mim.
Passei por ela, correndo pela cozinha e enveredei-me pelo quintal onde havia um vasto milharal.
Eu pensava:
_ “Meu pai não vai se habilitar a entrar neste milharal”.
- “Ah, minha avó não ia deixar que ele me batesse...”
Fiquei quietinha, dali só ouvindo os gritos de meu pai que me buscava:
- “Luizinha! Luizinha! Venha cá! Não adianta se esconder!”
Ouvi a voz da minha avó:
- “O que está acontecendo, Gijo? Que escândalo é esse?”
- “Cadê a Luizinha?”
- “Mas o que é que houve? Por que é que você quer a menina?”
- “Cadê ela, mãe?”
- “Mas o que foi que ela andou fazendo? Você não vai bater nela, você sabe que eu não vou deixar”.
- “Sabe o que foi que ela fez? Onde já se viu isso, mãe?! Tava na rabeira de um caminhão!”.
Minha avó ficou horrorizada:
- “Ah, foi isso, é? Coisa de moleque!! Pois então, pode bater!”
Meu mundo caiu.
Bem...
O quintal era grande e o milharal encobria tudo. Mas ele era murado. Tinha limite. Não havia como fugir.
Fiquei ali à espera do castigo.
De cinta dobrada.
Que me deixou por mais de uma semana com as marcas dela nas coxas. E febre de dois dias.
O bom de tudo isso foi que durante um bom tempo minha avó não deixou que ele me levasse para o sítio.
Nunca mesmo que eu gostei de mato!
Mas jamais odiei meu pai por isso.
Porque os pais da gente, cada um deles, tem a sua forma de amar."

In "MINHAS CRÔNICAS DE INFÂNCIA", de minha autoria, livreto editado em 2010 pela Editora Trombetti.

Nenhum comentário: