terça-feira, 1 de março de 2022

"PUTIN: O VILÃO PERFEITO PARA SUPRIR A DEMANDA POR VILÕES NO MUNDO OCIDENTAL"


Deveria ser uma tarefa fácil entender a importância estratégica da Ucrânia para Putin, sendo a região um enorme espaço plano que tanto a França napoleônica, a Alemanha imperial e mais tarde a nazista, precisaram cruzar para chegar até a Rússia, e, portanto, deveria ser igualmente fácil entender o que levou à invasão russa da Ucrânia.
Nenhum líder russo permitiria uma aliança militar que colocasse em risco os interesses russos e a sobrevivência da própria Rússia. Podemos condenar a invasão, mas sem fecharmos os olhos para a lógica por trás dela, especialmente quando se passaram mais de 20 anos de investidas do ocidente e da OTAN sobre o espaço vital russo. A gota d’água não caiu agora com a invasão, mas em 2014 com o golpe financiado por forças externas que culminou na deposição do presidente pró-Rússia, quando em resposta, Putin anexou a Criméia. A recente invasão da Ucrânia, é só o desdobramento maior de uma resposta que já estava em curso.
Apesar da falta de surpresas com a invasão, o que me espanta é a facilidade com que a mídia ocidental, e aqui incluo excepcionalmente a brasileira (não, exceto geograficamente falando, não somos considerados um país ocidental) toma para si o papel de demonização dos russos e de Putin. A cobertura tem se empenhado 24h em criar o vilão perfeito, calcada nos mesmos estereótipos que predominaram na Guerra Fria: o russo é um povo sanguinário que vive longe, fala uma língua estranha, bebe vodka demais e quer dominar o mundo, tudo isso concentrado na figura de seu líder, que não me espantaria se na caricatura ocidental Putin aparecesse usando um tapa olho.
Em que pese não serem mesmo boas companhias, Gadaffi, Saddam Hussein e Osama Bin Laden, coincidentemente, todos ex-aliados norte-americanos, quando passaram a se opor aos seus interesses foram descartados e transformados em inimigos do mundo ocidental pelos EUA com apoio massivo da mídia mundial. Apesar de nunca ter prestado favores aos EUA como seus predecessores vilões, é chegada a vez de Putin, que, convenhamos, também não é flor que se cheire, mas por outro lado, não é um tirano agressivo que decidiu fatiar a Ucrânia como tenta nos imprimir o noticiário, essa não é a história completa e o mundo é um lugar muito mais complexo do que um painel da Globo News mostrando as bandeiras dos países que apoiam ou condenam a invasão da Ucrânia.
A questão é mais complexa que isso, mas pode ser explicada, é uma estratégia fundamentada no soft power (poder brando).
O soft power é um elemento das relações internacionais onde um Estado se utiliza da cultura e da ideologia para infiltrar seus conceitos pelo mundo, pra trazer a discussão à mesa, trago como exemplos banais de soft power a calça jeans, a Coca-Cola e Hollywood, sim, são produtos culturais, que quando exportados, levam consigo modos de pensar. É uma maneira não explícita e não violenta (sem apelo às armas) de convencer outros povos e nações de que ideais como a democracia e o liberalismo econômico são os melhores, e que são valores universais e incontestáveis.
Entre os métodos mais sofisticados de soft power está o sistema de regime change (troca de regime), que é empregado como promoção da democracia, mas que se traduz em controle de governantes fantoches a serviço dos interesses ocidentais e a cooptação das massas para o seu lado.
Na Ucrânia, após o fim da Guerra Fria, desde meados dos anos 90 até 2013 (pouco antes da eclosão da “revolução” Euromaidan) os Estados Unidos investiram pelo menos 5 bilhões de dólares na promoção de suas ideias “democráticas”, e financiaram mais de 60 projetos visando introduzir na sociedade civil um pensamento pró-ocidental, o que culminou em 2014 na expulsão do presidente ucraniano democraticamente eleito (estou ouvindo ecos de nosso 2016?) Viktor Yanukovytch que era pró-Rússia.
Desde a primeira metade dos anos 90, os Estados Unidos não mediram esforços para infiltrar suas ideias na Ucrânia, na tentativa de trazê-la para sua esfera de influência e afastá-la da Rússia, o que sem dúvida, acendeu o alerta em Putin.
Assim tem sido na questão da OTAN, que vem continuamente se expandindo para o leste europeu e agregando as nações outrora satélites da União Soviética uma a uma. Na margem oposta desse rio, a cada movimento da OTAN, Putin vem advertindo o Ocidente de que a Rússia não ficará de braços cruzados enquanto seus vizinhos se tornam um bastião ocidental. A invasão da Ucrânia, portanto, não deve surpreender aqueles que acompanham a questão há tempos.
Os EUA têm usado o soft power de maneira muito eficiente desde que assumiram a posição de potência mundial nos pós Segunda Guerra. Com uma fórmula maniqueísta (bem x mal) de mocinhos X bandidos, se promoveram como os primeiros, e qualquer nação que se opusesse aos seus interesses geopolíticos automaticamente assumiria o papel de bandido (os denominados rogue states).
Com essa fórmula, associada ao poder econômico e bélico que adquiriram também no pós Segunda Guerra, proclamaram-se xerifes do mundo, que levariam os estandartes da democracia e da liberdade pelos quatro cantos, ainda que na maioria das vezes, em forma de bombas despejadas sobre as cabeças de povos menos favorecidos.
Onde houvesse um vilão ameaçando os valores ocidentais, lá estariam os campeões norte-americanos da democracia, a polícia do mundo que enfrentaria os bandidos. Mas o Ocidente precisa entender e admitir que nem todos querem beber do leite da vaca sagrada da democracia (emprestei essa expressão de Hobsbawm), especialmente quando esse leite foi azedado pelos norte-americanos, que por trás dessas bandeiras carregam seus verdadeiros interesses: expansão de sua esfera de influência (e retomada dela onde foi perdida) e dentro de toda lógica capitalista, lucro.
Sim, há parcela da população ucraniana que possui anseios genuínos de preservação das instituições democráticas, autodeterminação, e independência em relação a Rússia, ainda que o preço para se livrar dos russos seja assumir o papel de fantoches dos EUA. Confesso que me desagrada o desfecho da guerra, sou um pacifista, mas algumas teorias podem explicar o que está acontecendo, repito, EXPLICAR, e não justificar.
Segundo minha visão, que empresto da corrente de pensamento realista, nas relações internacionais o ambiente é anárquico, portanto, não há Direito Internacional ou instituição internacional (vide indiferença dos EUA sobre o veto do conselho de segurança da ONU quando da invasão do Iraque) capaz de frear as reações violentas dos países quando estes se sentirem ameaçados, ou seja, as nações farão o que for necessário pra preservar sua sobrevivência e seus interesses vitais, independente da lógica liberal democrática vigente.
Sim, há interessados na guerra, muito mais interessados do que os Estados envolvidos ou seus representantes, não falo também de soldados ou generais, na lógica capitalista, os verdadeiros entusiastas da guerra são aqueles que lucram com ela, os grandes bancos financiando os dois lados dos conflitos, as grandes empreiteiras americanas como a Haliburton que após a destruição, lucram com a reconstrução, e claro, a indústria armamentista.
Lamentavelmente, esses interesses por trás de cada conflito no mundo acabam ocultados por um cowboy usando calças jeans, bebendo Coca-Cola que usurpando as bandeiras da liberdade e democracia, se passa pelo mocinho da história e combate o tirano lunático de tapa olho cujo objetivo é o extermínio de inocentes e a dominação mundial.
O saldo são muitas vidas destruídas e a opinião pública mundial totalmente desvinculada da realidade, mais uma vez. "

Vinicius Scaramella Maros / Via Egon Mutskopf

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