sábado, 26 de março de 2016

A HISTÓRIA DE ELA

A HISTÓRIA DE ELA, QUE VIVEU TRÊS SEMANAS E MEIA COMO ESCRAVA SEXUAL NAS SELVAS DO CONGO

Estive hoje com o belga François Dumont, porta-voz da organização não-governamental Medecins Sans Frontieres (MSF) para o leste da República Democrática do Congo (RDC).
Ele me passou alguns números de atendimentos da entidade na província de Kivu Norte. 
Goma, onde estou, é a capital. 
Entre janeiro e outubro, a equipe de médicos da entidade fez o seguinte:
1) mais de 4.600 intervenções cirúrgicas;
2) cerca de 172 mil consultas;
3) 27 mil pacientes admitidos em hospitais onde a entidade atua;
4) tratados mais de 7 mil pacientes com cólera;
5) realizados cerca de 850 cirurgias em pacientes com ferimentos de guerra;
6) tratados mais de 3.200 casos de mal-nutrição;
7) vacinadas 19.900 pessoas contra rubéola;
8) Atendimento médico a cerca de 5.700 vítimas de violência sexual.

Revejo a relação de atendimentos.
Um monte de números.
Os números do item 8 me chamam a atenção. Atendimento médico a cerca de 5.700 vítimas de violência sexual.
Nada me dizem. Ou melhor, nada me diriam se eu não tivesse feito o que fiz no domingo de manhã.
Tudo começou porque conheci Mikal Hem, jornalista norueguês de 35 anos que, por acaso, estava hospedado no mesmo hotel que eu em Goma.
Ele havia chegado a Goma na sexta-feira, um dia depois de mim, num vôo proveniente de Kinshasa. Veio com outros jornalistas noruegueses (sim, aqueles que conseguiram a entrevista exclusiva com o general rebelde Laurent Nkunda só pelo fato de serem loiros, jovens, dinamarqueses e europeus) para cobrir a visita de um desses ministros noruegueses que agora não me recordo quem.
Ofereci a ele uma carona no carro que alugamos para o evento com Nkunda, no sábado, em Rutshuru. Ele aceitou, mas depois disse que tinha outras entrevistas para fazer e acabou não nos acompanhando.
Voltamos a nos encontrar no restaurante do hotel, no sábado à noite, quando voltamos de Rutshuru. Comentei que gostaria de entrevistar algumas crianças-soldado, mas que o Unicef me informara que, provavelmente, não seria possível. Os jovens estão muito traumatizados e as ONGs que cuidam de sua recuperação querem preservá-los e evitar que revivam os horrores da guerra naquelas entrevistas que os jornalistas adoram fazer.
Mikal me disse que, no domingo, entrevistaria alguns jovens que integram projetos de recuperação e reinserção social promovidos pela Norwegian Church Aid em parceria com outras entidades. Perguntou se eu gostaria de ir. Aceitei.
Entrevistamos três jovens. Mas agora vou contar a história de uma delas.
Na verdade, a história de um número. Provavelmente, um daqueles 5.700 casos de vítimas de violência sexual.
Houve duas condições para a entrevista: nomes não seriam citados. Rostos não seriam mostrados.
Por isso não saberemos o nome dela. Por isso vocês não verão o rosto dela.
Mas vou contar sua história. A história de Ela, que viveu três semanas e meia como escrava sexual nas florestas da República Democrática do Congo.
Ela tem 19 anos e nasceu na vila de Katana.
Em agosto do ano passado, soldados hutus que participaram do genocídio em Ruanda, em 1994, e que ainda perambulam pelas selvas da tríplice fronteira entre o Congo, Ruanda e Uganda, invadiram o vilarejo onde Ela morava com sua família.
Mataram o pai de Ela, amarraram a mãe com as mãos nas costas e a deixaram sob a mesa da cozinha. Ela e dois irmãos mais novos foram levados pela milícia, junto com outros jovens do vilarejo.
Foram obrigados a transportar mantimentos e bagagem dos soldados. Durante três semanas e meia, as mulheres do grupo foram sucessivamente estupradas. As violações eram feitas por soldados sozinhos, em grupos.
Quatro mulheres que se recusaram a se submeter aos criminosos foram assassinadas e seus corpos largados na selva.
Ao fim das três semanas e meia, as mulheres sobreviventes foram abandonadas na floresta. Descalças, semi-nuas, arrebentadas no corpo e na alma. Os rapazes foram levados para continuar a carregar a bagagem dos soldados.
Ela foi encontrada por moradores da região e levada de volta a Katana. Seu pai já havia sido enterrado. Sua mãe desaparecera.
Sentindo-se sozinha, Ela partiu em direção a Goma. Na cidade, conheceu um professor que a levou para um centro de recuperação.
Pouco tempo depois, Ela descobriu que estava grávida.
Ela não fala inglês nem francês, apenas swuaili. A entrevista conta com a ajuda de um intérprete congolês. Decido fazer uma pergunta difícil. Aviso ao intérprete que é uma pergunta difícil.
EU – Você pensou em abortar a criança em algum momento?
Ferdinand, o intérprete, me olha nos olhos, respira fundo e baixa o tom de voz antes de traduzir a pergunta para swuaili.
Ela baixa a cabeça. Seus olhos enchem-se de lágrimas. Fala para dentro.
Não entendo uma palavra do que Ela diz em swuaili, mas a tristeza no seu rosto é tão cortante que também me emociono. É como uma cicatriz que está condenada a carregar pelo resto da vida.
Antes de traduzir, Ferdinand dá um suspiro e diz:

FERDINAND – É um pouco difícil.
E traduz.
ELA – Sim, pensei. Mas não sabia como fazer. Quando a bebê nasceu, fiquei feliz porque era minha filha. Mas não totalmente feliz pela forma, pela dor como ela foi concebida.
Em breve, Ela terá uma profissão inusitada para uma mulher: encanadora.
ELA – Estou feliz e sou grata por ter sido recebida aqui e por estar aprendendo uma profissão que me dará conhecimento e esperança para reconstruir minha vida.
EU – Que conselho você daria às mulheres que passam pelo que você passou?
ELA – Que não fiquem em silêncio. Que procurem ajuda.
A filha de Ela tem cinco meses. Ficou parte da entrevista amarrada às costas da mãe, enrolada naqueles panos tão característicos de África. Depois começou a chorar e foi levada por um colega. Não escutou a mãe dizer que havia pensado em abortá-la.
 
 
Ela, de 19 anos, com a filha de cinco meses amarrada nas costas.

François, dos Medecins Sans Frontieres, me chama a atenção que os 5.700 casos de violência sexual atendidos são apenas os conhecidos pela entidade. Apenas os de mulheres que, de uma forma ou de outra, acabaram sendo atendidas por algum médico da ONG e agora fazem parte das estatísticas.
Não se sabe quantos mais existem por aí. Ou por que as mulheres têm medo, vergonha, não sabem a quem recorrer, não sabem que têm direitos ou por que vivem em áreas de conflito em que o nível de segurança é muito baixo para que os médicos cheguem aos vilarejos nas profundezas do Congo.
As mulheres são atacadas, em geral, quando saem para buscar água ou lenha nos arredores de casa.
Antes de falar com François, eu havia entrevistado Jaya Murthy, porta-voz do Unicef para o leste do Congo. Jaya é meio canadense, meio indiano. Tem quase dois metros de altura e está em Goma há cinco anos.
Quando pergunto a ele sobre os casos de abusos sexuais contra meninas e mulheres, ele também menciona alguns números. Mas é uma frase dele que mais me chama a atenção.
JAYA – O lado ruim dos números é que eles não mostram a crueldade dos estupros, que as mulheres são violadas sucessivamente durante dias e por vários homens ao mesmo tempo. São violações tão graves que muitas precisam de cirurgia de reconstrução vaginal e anal.
Algumas mulheres vítimas de violência sexual estão sendo preparadas pelo Unicef e outras entidades para quebrar o silêncio, para denunciar o que sofreram, apontar os agressores para que outras mulheres sintam-se estimuladas a não se calar.
Em Goma há um hospital especializado nesse tipo de tratamento. Irei lá amanhã.
Mas vou com aquela impressão de que já vou tarde. 
 
Carlos Alberto Jr. in Diário da África em 24 de novembro de 2008.
 

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