domingo, 20 de novembro de 2016

UMA CRÔNICA DE RAYMUNDO FARIAS DE OLIVEIRA

O Comício

O tempo seguiu sua marcha implacável e demonstrou-me, nos três anos seguintes, que Caiuá não seria bombardeada (como felizmente não foi), mas nossos navios estavam sendo afundados covarde e traiçoeiramente pelos submarinos alemães, nas águas do Atlântico que banham as lindas praias do Nordeste.
Quando afundaram cinco de uma só vez lá nas costas de Sergipe, Caiuá, fazendo coro com o Brasil inteiro, foi para as ruas protestar e mostrar a sua indignação contra a inominável agressão a pacatos navios carregados de civis em viagem pela costa brasileira. 
Pela primeira vez, ouvi a palavra comício.
Era o dia 19 de agosto de 1942. 
A vida caiuaense transformou-se, e no semblante de todos pairava uma interrogação cruel. 
As notícias que chegavam pelos jornais da capital e pelos poucos rádios existentes (ouvidos em grupos assustados), estabeleceram um clima de perplexidade geral. 
Todos queriam saber como o presidente Getúlio Vargas iria reagir à insólita agressão.
Ao cair da tarde, seu Zico Ferraz, envergando um conjunto de culote, bota alta e túnica, evocou talvez a conspícua figura de seu irmão Capitão Shakespeare, ex-prefeito de Presidente Venceslau; percorreu o comércio, casa por casa, convidando a todos para se reunirem, em frente à sua farmácia, após o jantar, onde teria início o "ato público" de protesto contra a morte traiçoeira de nossos patrícios em águas brasileiras. 
A notícia fervilhou por toda a parte. 
Iria haver um "comício" após o jantar, na Avenida João Pessoa, em frente à farmácia de seu Zico.
Meu Deus, o que era aquilo? 
Comerciantes chamando as mulheres ou os filhos para assumirem o balcão, a fim de tomarem banho mais cedo, mudarem a roupa para o tal comício; outros cerrando suas portas numa antecipação de protesto; outros sob forte emoção sendo contidos para não irem às padarias tirar satisfações com os alemães, que se mantinham num silêncio sepulcral. 
Enfim, o espectro da guerra chegara à tranquila e alegre Caiuá.
À noitinha, o subdelegado Pedro Alexandre de Oliveira, o vereador João Antônio Durães, o juiz de paz Laudelino José de Medeiros, o fiscal, os funcionários e comerciantes, ferroviários e empregados, formavam a pequena multidão em frente à farmácia, quando seu Zico, pálido e trêmulo, pronunciou violento discurso contra "Hitler e seus asseclas". 
Depois, saíram caminhando ordeiramente e foram até o Cartório de Registro Civil, percorrendo um trecho da Avenida João Pessoa, a Rua Doutor Álvaro Coelho e a Avenida Siqueira Campos. No tabelionato, foram recebidos por seu Tavares. Cabelos grisalhos, camisa branca impecável, também um tanto pálido de emoção. Ao lado do filho e da mulher, seu Tavares também lavrou, em voz tranquila mas forte, o seu manifesto contra os nazistas e suas agressões covardes. 
Coube a João Durães, no seu doce e veemente sotaque baiano, encerrar a manifestação cívica do "povo caiuaense em solidariedade aos nossos irmãos e patrícios traiçoeiramente assassinados e o apelo público para que o Presidente da República, cônscio das suas responsabilidades e deveres para com a pátria, desse a corajosa resposta aos nossos inimigos. E a resposta era uma só, que já estava na boca e no coração do povo: declaração de guerra às nações do Eixo..".
Com "vivas ao Brasil", a multidão foi aos poucos se desfazendo. Grupos animados, conversando alto, caminhavam no areião das ruas e avenidas em direção às suas casas. 
Os mais exaltados fizeram questão de acompanhar os líderes caiuaenses até as suas respectivas residências, com estímulos e apoios frenéticos.
Seu João Durães, gordo, moreno, envergando o solene terno de caroá xadrezado, a gravata listrada esvoaçando sobre o abdômen, o chapéu seguro na mão direita, mostrava-se feliz no seu entusiasmo cívico, caminhando à frente de seus amigos. Seguido por muitas pessoas até a sua propriedade, no início do caminho que ia para o bairro da Santa Cruz, estacou no portão, e ali, sob a imensa "primavera" que enfeitava a entrada, dirigiu mais algumas palavras solenes aos circundantes, pedindo "bom senso, calma e patriotismo". 
Foi aplaudido mais uma vez, e todos tomaram o rumo de suas casas.
No céu límpido, onde algumas estrelas começavam a cintilar, uma lua branca, imensa, começava a despontar lá pra os lados da Chave Madeiral.
 
Crônica do escritor e jurista Raymundo Farias de Oliveira, foto acima, nascido em Missão Velha, no Ceará. Depois de ter residido em Cafelândia, no interior paulista, sua família se transferiu para a zona rural de Caiuá, atraída pela lavoura de café. Cursou o primário no Grupo Escolar de Caiuá, o ginasial em Presidente Prudente, contabilidade na capital paulista e direito, em Bauru, na Instituição Toledo. Sempre escrevendo para jornais do interior e da capital, ocupou vários cargos de confiança no Estado e, aposentado, dedicou-se à arte de escrever, tendo publicado crônicas, contos, poesias, novelas e ensaios. Escreveu 10 livros.

Fonte: EMUBRA

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