Pessoas e urubus disputam lixo no aterro de Votorantim
Local é cenário de miséria, onde adultos e crianças tiram dos restos o sustento. Prefeitura reconhece a situação.
No aterro, são 18 pessoas que trabalham diariamente sob condições inadequadas e em meio aos urubus. Crédito da foto: Marcel Scinocca (24/1/2020)
O Aterro Sanitário de Votorantim apresenta características que são próprias de um lixão. Há várias situações que podem representar irregularidade, incluindo a presença de pessoas separando materiais, animais domésticos e possíveis problemas na operação.
Votorantim produz cerca de 140 toneladas de resíduos domiciliares por dia. O material é enviado para o aterro sanitário do município, que fica na rodovia que dá acesso à cidade de Piedade. Apesar de haver uma portaria, acessos nas laterais do terreno permitem a entrada ao local sem qualquer dificuldade.
São pelo menos 18 pessoas que atuam no aterro diariamente. A atividade começa por volta das 16h e a “jornada” pode passar de 5 horas por dia, terminando por volta das 21h. Nem todos os trabalhadores usam luvas, por exemplo. A coleta ocorre também no momento em que caminhões que fazem a coleta e o transporte do lixo urbano descarregam. As pessoas se aglomeram no instante em que há descarregamento, potencializando os riscos de acidentes já presentes na área.
Os trabalhadores separam o material logo após o descarregamento e colocam em sacos pretos chamados de “bag”. Após isso, o material é transportado, muitas vezes nas costas, para uma espécie de acampamento improvisado. O local fica a cerca de 200 metros de onde há o despejo de resíduos.
No acampamento improvisado, há centenas de sacos com materiais separados que aguardam compradores. Há, inclusive, pessoas que residem bem próximas do local. O acesso ao acampamento e ao aterro é feito por uma estrada que fica a cerca de 200 metros da portaria.
Os trabalhadores separam o material logo após o descarregamento e colocam em sacos pretos. Crédito da foto: Marcel Scinocca (24/1/2020)
Crianças
No local não tem banheiro e há a presença de crianças. Durante o processo, há a separação de alimentos, possivelmente para o consumo. A situação é demonstrada por um panetone, ao lado de uma das “bags”. O relato das crianças também contribui para a suspeita. “Aqui acha carne, comida, bastante coisa (…) doce”, diz uma delas. “Minha mãe achou ontem uma sacolona de carne. Muito boa, geladinha”, conta outra.
É possível verificar a queima de resíduos. Com odor forte, a fumaça pode ser resultado do processo de separação dos itens, como cobre. As crianças, geralmente, ficam no local. Conforme relatos das próprias, há casos em que elas vão ao local de separação. “É perigoso lá só para criança. A gente [vai lá] só quando não tem caminhão”, conta uma delas. “Criança pode catar lá quando não tem caminhão. Eu já catei lá”, conta outra.
Compactação
O lixo espalhado no local denuncia que há algum tipo de pausa em um dos processos obrigatórios em um aterro sanitário, a compactação de resíduos. Enquanto os trabalhadores separavam o material, por mais de duas horas, a máquina que deveria fazer o processo estava parada. Aparentemente, não havia operador no local.
As centenas de toneladas de resíduos estão espalhadas em dois pontos. Em um deles, aparentemente, há chorume misturado com água de chuva. O líquido que escorre é de matéria orgânica em decomposição. O material é poluente, apresenta odor forte e nocivo ao meio ambiente.
Animais
Na área de despejo de resíduos, em meio aos trabalhadores, há a presença constante de um sem-número de urubus. São centenas deles. Eles não se importam com catadores. Os catadores, movidos pela necessidade, aparentemente, também parecem não se incomodar mais com eles. Ao lado, demonstrando afeto, possivelmente a seus donos, há vários cachorros, alheios ao mau cheiro, mas também ao sofrimento e à paisagem desoladora presentes no local.
Vistoria
A Cetesb afirmou no final de tarde de ontem que o aterro passará por vistoria nesta terça-feira (28). A instituição afirmou ainda que a última vistoria no local foi feita em novembro de 2019.
Conceitos
As necessidades determinantes para um aterro sanitário é que ele tenha impermeabilização de solo, controle e tratamento do chorume. Outras situações também são consideradas, entre elas a proibição da presença de pessoas alheias ao processo e o rigoroso controle para impedir a presença de animais. Os lixões são locais onde não há qualquer controle e os materiais são depositados e deixados a céu aberto.
Cidade produz 140 toneladas de lixo por dia. Crédito da foto: Marcel Scinocca (24/1/2020)
Secretário diz que é difícil evitar catadores
O secretário de governo e planejamento de Votorantim, Carlos Laino, afirmou que tem conhecimento da situação envolvendo a presença dos catadores. “Isso é uma coisa de décadas. É uma coisa que é inerente a um aterro sanitário”, diz.
“Não ter urubus é impossível. Não existe nenhum aterro sanitário do mundo, que tenha esse nome e que tenha essa operação, que não tenha urubu”, diz. “É lixo, o urubu tá lá”, acrescenta. “O que não pode ter é gente, pessoas alheias àquele trabalho”, pondera.
Apesar de registros mostrarem a máquina que faz o trabalho de compactação parada, Laino nega. A máquina, segundo ele, trabalha durante todo o dia, de forma permanente. Ele também negou a presença de pessoas no momento do descarregamento de material. “No meio da operação, quando está sendo feita a destinação, não tem. Eles vão na hora que não tem movimento”. Imagens, no entanto, mostram o contrário. Ele também disse que o fato de pessoas trabalharem no local durante a noite causa preocupação.
Ainda conforme ele, não há como controlar a entrada de pessoas, com ronda, por exemplo. “Não temos estrutura para isso. As pessoas ficam naquele fundo que faz divisa com Piedade. Isso é muito difícil de evitar. A gente ia precisar de uma mão de obra muito grande.” Ele falou em incentivar a coleta seletiva, como forma de amenizar o problema. Laino afirmou também que fechar o local, impedindo a entrada de pessoas apresenta custos muitos altos.
“A informação que a gente tem é que a invasão está ocorrendo em Piedade”, diz. Ele afirmou que as pessoas já foram orientadas a não estarem no local, mas que a área é a forma de sobrevivência delas.
Questionado sobre a possibilidade de o município ter a nota da Cetesb rebaixada em função dos problemas, Laino disse que isso vai depender do bom senso do fiscal.
O secretário de governo e planejamento de Votorantim, Carlos Laino. Crédito da foto: Aldo V. Silva (01/01/2017)
Médico alerta para riscos graves à saúde
Para o médico infectologista Eduardo Leite Croco, as condições do aterro sanitário de Votorantim oferecem muitos riscos aos catadores de recicláveis. “Eles estão expostos a situações bastante precárias. Sem contar que é um local em que não existe condições mínimas para o asseio pessoal. Não tem esgoto, não tem condições de elas usarem o banheiro, lavar as mãos ou mesmo até ingerir água potável de forma adequada”, diz.
Nos casos dos animais, conforme o médico, eles podem ser transmissores diretos de doenças. “Tanto virais como bacterianas, que podem causar diarreia, vômito, ou mais graves, como transmitidas por eles, que são infecções por fungos”, diz, sobre os pássaros. Com relação aos cães, a preocupação é com a possibilidade de contraírem leishmaniose.
Croco lembra também que no local pode haver material contaminado, por exemplo, com HIV ou hepatites B e C. Conforme ele, no caso das hepatites, o vírus pode permanecer vivo por até sete dias. “Também é um risco adicional a todos os outros”, afirma.
Especialista diz que funcionamento do aterro está errado
“Não está sendo bem operado. Tem muito para ser melhorado, para ser um aterro sanitário bom”, avalia Sandro Donnini Mancini, especialista em materiais e reciclagem e professor da Unesp, sobre a situação do aterro sanitário de Votorantim. “Há muito resíduo espalhado. Geralmente, você deixa esse material em uma área menor. Talvez eles tenham feito isso para facilitar a vida dos catadores. Mas está aí um erro bem grande. Não é para ter catador ali”, afirma. “Tem muito urubu. É sinal que eles estão fazendo ninho por perto, que tem famílias de urubus. Também tem crianças no local, o que é pior ainda”, acrescenta.
Apesar das irregularidades, Mancini lembra que há pessoas que tiram seus sustento do aterro de Votorantim. “Eles estão subsistindo, sobrevivendo. Se eles não fizerem isso, vão para onde? Falta uma política pública bastante ativa do poder público para tirar esse pessoal do local e dar condições dignas de trabalho, ainda que seja na separação de resíduos”, lembra o professor. “Não é um operação normal, de jeito nenhum”, diz sobre o fato de haver máquinas paradas no local.
Apesar das irregularidades, o professor lembra que há pessoas que tiram seus sustento do aterro de Votorantim. Crédito da foto: Marcel Scinocca (24/1/2020)
Conforme Mancini, a queima de material não poderia ocorrer no aterro. “Isso está errado também. É uma situação que não pode acontecer”, afirma. Está tudo errado”, enfatiza. “Você pode ter resíduos perigosos ali. Alguém pode se machucar”, complementa.
Mancini também comentou sobre a possível presença de chorume no local de descarte, justamente onde se concentram os catadores. “Isso é um líquido extremamente poluente. Pode conter vários metais, incluindo metais pesados. Não deve estar ali”, diz.
“Você precisa retirar os catadores, compactar direito e fazer o aterramento”, explica o professor. Entretanto, conforme ele, é preciso pensar nas pessoas que trabalham no local. “Como é que elas vão fazer para sobreviver?”, questiona, defendendo que seja implementada alguma política para ajudar os trabalhadores simultaneamente à regularização da operação.
Sistema adotado em Itapevi tem uma das maiores notas
Para efeito de comparação, a reportagem do Cruzeiro visitou o aterro da cidade Itapevi, na Região Metropolitana de São Paulo. Chamado de Centro de Gerenciamento de Resíduos (CGR), o aterro possui uma das maiores notas do Estado — 9.2 –, atribuída pela Cetesb. O local é administrado pela empresa Estre, que é especialista em serviços ambientais, incluindo a gestão final de resíduos sólidos.
Na área, são recebidos por dia cerca de 70 caminhões — cerca de 400 toneladas — de resíduos sólidos domiciliares. Segundo o gerente de operações do local, Flavio Malafaia, o processo começa com uma inspeção visual e química na carga. Os caminhões são pesados e levados para um dos locais da operação, chamados de célula. Após isso, ocorre o processo de compactação de aterramento.
No Centro de Gerenciamento de Recursos de Itapevi, lixo é compactado e aterrado. Crédito da foto: Marcel Scinocca
O empreendimento conta com portaria 24 horas e não há a entrada de catadores. O local também possui cobertura, para evitar urubus e animais domésticos. A presença das aves é quase nula. O odor também. Diferente de Votorantim, em Itapevi a compactação do resíduo ocorre logo após os descarregamentos.
No caso do chorume, em Itapevi há uma “bacia” onde o material é captado por meio da drenagem e por gravidade. Em seguida, a substância é bombeada para reservatórios e aguarda a retirada para tratamento, que é feito fora do aterro. “A bacia de chorume é inteiramente coberta. Logo após (o chorume) descer para contenção, é levado para o reservatório”, lembra.
O CGR de Itapevi ainda conta com uma unidade de biogás, combustível produzido a partir do lixo. O sistema aspira o metano que sai dos resíduos. Esse produto vai para uma estação e posteriormente é queimado. O processo é reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e rende créditos de carbono à empresa.
Cruzeiro do Sul.
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