sábado, 11 de março de 2023

O BIÓLOGO MIA COUTO:



[...]Sou biólogo e ecologista. O que me fascina é a fronteira entre a descoberta científica e a margem de mistério que sempre subsiste. Mas sobretudo a Biologia me ajudou a repensar-me como pessoa solidária e de identidades partilhadas. A Biologia ensinou-me a entender outras linguagens, ensinou-me a fala das árvores, a fala dos que não falam. Resgatei uma intimidade perdida com criaturas que parecem muito distantes de nós. Hoje em nenhum lugar me sinto uma criatura solitária. Com ela entendi a vida como uma história, uma narrativa perpétua de que somos apenas uma pequena parte. Mais do que tudo ela me trouxe a saúde de pensar que faço parte de uma epopeia partilhada por milhões de criaturas, e nessa antiga saga não existe nunca um ator principal.

O sr. afirmou uma vez que os cientistas estão perdendo o desafio de ter dúvidas. Quais são as suas?
Mais do que dúvidas, tenho receios. Penso que aos poucos a ecologia tenha sido recuperada e domesticada. A ecologia oferecia uma visão inovadora e capaz de questionar o homem como centro e proprietário do patrimônio natural. Hoje generalizou-se uma terminologia simplificada que confirma esse lugar de pretensos administradores dos patrimônios naturais que curiosamente são designados por “recursos”. As próprias pessoas são designadas por “recursos humanos”. O termo “ecológico” passou a ser uma etiqueta de marketing. Há sabonetes ecológicos, palitos ecológicos. Não tarda que haja armamento ecológico.[...]

Que consequência isso pode ter?
As questões ambientais foram apartadas e autonomizadas. Sugere-se que os biólogos sejam espécies de fiéis de armazém no controle desses recursos. Sugere-se que os ecologistas devam ocupar-se de espécies e hábitats em extinção. Que fiquem pelas questões “ambientais”. Mas os problemas da falta do uso e da posse da terra, da água e da fome são também ambientais.

O que o trabalho como consultor ambiental lhe ensina?
O discurso da preservação é infelizmente necessário. Mas o assunto verdadeiro não é de preservação mas do uso correto da natureza. O desafio é terminar com uma economia predadora e não apenas de corrigir os seus excessos. É importante educar as pessoas sobre o bom uso da água e da energia e sobre os deveres de limpar e manter limpo. Mas os grandes causadores do desastre global a que assistimos não são as pessoas comuns. São grandes indústrias, grandes interesses econômicos que não alterarão a sua atitude por causa de campanhas de sensibilização.[...]

Entrevista publicado na revista Istoé. ed., 15.6.2017 – nº 2479. Entrevista concedida aos jornalistas Cilene Pereira e Celso Masson

Nenhum comentário: