terça-feira, 29 de outubro de 2013

MANEIRAS DE MORRER

“O homem nunca pode chegar a prever todos os perigos que o ameaçam a cada instante” (Horácio). 
Deixo de lado as doenças, as febres, as pleurisias. Quem poderia imaginar que um duque da Bretanha fosse morrer sufocado pela multidão, como aconteceu a um deles, quando da entrada em Lyon do Papa Clemente, meu compatriota? 
Não vimos um dos nossos reis morrer num folguedo? 
E não faleceu outro, seu antepassado, da queda de um porco que montava? 
Ésquilo, advertido de que morreria da queda de uma casa, embora dormisse num campo de trigo, foi esmagado por uma tartaruga caída das garras de uma águia. 
Houve quem sucumbisse em consequência de uma semente de uva engolida; outro, imperador, morreu de um arranhão feito com o pente; Emílio Lépido em virtude de uma topada na porta de sua casa; Aufídio por ter batido com a cabeça no batente da entrada da sala do Conselho. 
E entre as coxas das mulheres: o pretor Cornélio Galo, Tigelino, comandante da guarda de Roma, Ludovico, filho de Guy de Gonzaga, Marquês de Mântua, e, o que é péssimo exemplo, Espêusipo, filósofo platônico. E até um papa de nosso tempo.
O pobre Bebius, que era juiz, ao adiar o julgamento de certa causa, morreu subitamente; chegara a sua hora. 
O médico Caio Júlio, ao tratar dos olhos de um enfermo, teve os seus próprios fechados para sempre. 
E, para misturar-me à enumeração: um dos meus irmãos, Capitão Saint Martin, de vinte e quatro anos e que já dera provas sobejas de seu valor, foi atingido por uma bola logo abaixo da orelha direita quando jogava queimada. 
Nem vestígio nem contusão, não se sentou sequer, não interrompeu o jogo, e, no entanto, cinco ou seis horas depois, ei-lo atacado de apoplexia causada pelo golpe recebido.
Tais exemplos são tão frequentes, repetem-se tão comumente diante de nossos olhos, que não parece possível evitar que nosso pensamento se oriente para a morte, nem negar que a cada instante ela nos ameace. 
Que importa o que possa acontecer, direis, se não nos preocupamos com isso? 
É também meu parecer, e se houvesse meio de escapar ao golpe, ainda que fosse sob uma pele de vitela, não seria homem se não o empregasse, pois a mim me basta viver sossegado e pondo em prática tudo o que para isto venha contribuir, embora pouco glorioso ou exemplar: “prefiro passar por louco ou impertinente, se meu erro me agrada ou não o percebo, a ser sábio e sofrer” (Horácio). 
É loucura, porém, querer se furtar assim a essa ideia. 
Vai-se, volta-se, corre-se, dança-se: nenhuma notícia da morte, que beleza! 
Mas, quando ela nos cai em cima, ou em cima de nossas mulheres, nossos filhos, nossos amigos, que os surpreenda ou não, quantos tormentos, gritos, imprecações, desespero! 
Vistes alguém mais humilhado, transtornado, confundido? 
É preciso preocupar-se com ela de antemão. 
Pois esse descuido animal, ainda que pudesse se alojar na mente de um homem inteligente, o que acho inteiramente impossível, nos faz pagar caro demais sua mercadoria. 
Se a morte fosse um inimigo suscetível de se evitar, aconselharia agir diante dela como um covarde diante do perigo; mas, em não sendo isso verdade, e atingindo ela infalivelmente os fugitivos, covardes ou valentes, “persegue o homem em sua fuga e não poupa nem mesmo a tímida juventude que tenta escapar-lhe” (Horácio); como nenhuma couraça nos protege contra ela, “cobri-vos de ferro e bronze, a morte vos atingirá sob a armadura” (idem), aprendamos a esperá-la de pé firme e a lutar. 
Para começar a despojá-la da vantagem maior de que dispõe contra nós, tomemos o caminho inverso ao habitual. 
Tiremos dela o que tem de estranho; habituemo-nos a ela, não pensemos em outra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as formas. 
Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de alfinete, digamos: “se fosse a morte!”, e esforcemo-nos em reagir contra a apreensão que uma tal reflexão pode provocar. Em meio às festas e aos divertimentos, lembremo-nos sem cessar de que somos mortais, e não nos entreguemos tão inteiramente ao prazer que não nos sobre tempo para recordar que de mil maneiras nossa alegria pode acabar na morte, nem em quantas circunstâncias ela sobrevém inopinadamente. 
É o que faziam os egípcios quando, em seus festivais e voltados aos prazeres da mesa, mandavam trazer um esqueleto humano para rememorar aos convivas a fragilidade de sua vida: 
“Pensa que cada dia é teu último dia, e aceitarás com gratidão aquele que não mais esperavas” (idem).

Michel de Montaigne, in De como filosofar é aprender a morrer.

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