Críticos ferrenhos da corrupção na esfera pública, mas tentando se dar bem no âmbito privado, brasileiros confessam suas pequenas corrupções.
Eles contam, mas não mostram o rosto
GABRIELA VARELLA E LUIZA SOUTO
Falsificou a carteirinha da universidade para ter descontos em eventos culturais (Foto: Marcos Alves/Agência O Globo)
Comentar denúncias de corrupção, condenar seus praticantes sumariamente à cadeia (ou a coisa pior), relatar o muito que poderia ser feito com o dinheiro roubado e comparar com a situação em outros países é um esporte largamente praticado no Brasil.
O que seria de almoços familiares ou conversas em bares sem o surrado hábito de jogar pedras de forma genérica na roubalheira e em seus atores?
Ainda que seja tema complexo, os brasileiros não perdem oportunidade de se arriscar na condenação da prática. Curioso, no entanto, é como parte o faz de forma abundante. A época alguns brasileiros toparam contar suas histórias, acompanhadas de justificativas para não considerarem a si mesmos — terrível designação — corruptos.
Ao contrário do tratamento duro que dispensam a políticos ou a empresários que ganham notoriedade por malfeitos, os brasileiros comuns adotam regras mais maleáveis, flexíveis e suaves ao julgar suas incursões pelo mundo das irregularidades.
A pesquisadora K., de 34 anos, perdeu a mãe em 2016. O combate à doença que a matou durou dois anos, e ao final ela e o irmão estavam atolados em dívidas. A pior situação era a do irmão, que tinha o nome sujo e havia comprado um carro financiado no nome da mãe. Para sanar metade do problema, ele decidiu vender o veículo. Mas, para transferir a titularidade e poder vender o carro, era preciso fazer o inventário — o que levaria tempo — e pagar as taxas obrigatórias. Os irmãos decidiram então falsificar a assinatura da falecida e fazer o procedimento com data retroativa. “Demos um jeitinho brasileiro. A burocracia deste país nos obriga a fazer essas coisas”, disse o irmão. “Não tinha o que fazer. Mas somos supercontra a corrupção”, complementou K.
O raciocínio dos dois é comum nos milhões de episódios de delitos praticados no cotidiano.
Primeiro, um ato de corrupção, um crime, é tratado com um eufemismo socialmente aceito, chamado de “jeitinho” — que nada mais é do que uma burla na lei.
Ao explicar o que fizeram, ambos culpam um agente externo — pode ser a burocracia, as empresas — e se colocam no papel de reféns de um sistema. Outro ponto comum: os irmãos fazem questão de se dizer contrários a qualquer tipo de suborno, apesar de terem cometido um ato irregular. Políticos ou empresários corruptos, aqueles que aparecem em notícias, adotam atitudes parecidas.
A propósito: falsificar assinatura e documentos são ambos crimes, cada um deles com pena prevista de um a três anos de prisão.
Há casos em que o delito se torna parte do cotidiano, uma banalização da ilegalidade.
O corretor de imóveis Rafael, de 35 anos, costuma “dar uma mexida” no contracheque de clientes. Em linguagem direta, falsifica a renda de clientes para que consigam financiamento bancário — e, por consequência, ele consiga vender um imóvel. “Não há muito o que fazer: muitos não têm carteira assinada ou ganham pouco, então digamos que a gente ajuda a complementar a renda no documento”, disse. “Sabemos que não é correto, mas precisamos garantir o nosso e também ajudá-los a realizar o sonho da casa própria. Tão bom ver a pessoa que ganha seu dinheirinho suado ter uma casa legal. A gente não perde a venda, e os bancos ficam felizes.”
A atitude de Rafael prejudica o sistema financeiro. Não é possível falsificar dinheiro, portanto a chance de seus clientes ficarem inadimplentes no futuro é alta.
Para justificar seu ato, o corretor recorre a outra muleta comum para a consciência: diz estar trazendo a felicidade a alguém. Na verdade, está interessado em realizar a venda e ganhar sua comissão.
É costume as pessoas descumprirem a norma quando não enxergam um prejuízo concreto aos semelhantes ou quando não confiam na legitimidade da lei, constatou a professora Luciana Ramos, da FGV Direito SP, numa pesquisa que coordenou em 2016, o Índice de percepção do cumprimento da lei.
Mais do que isso, quando os entrevistados são colocados na posição de avaliar a atuação de outras pessoas, eles relatam a impressão de que a população em geral não tem o costume de cumprir a lei, mas de dar um — de novo o eufemismo — “jeitinho”.
Cibele não pensou duas vezes e pagou indevidamente para conseguir sua carteira de motorista. Não queria perder tempo caso fosse reprovada no exame prático (Foto: Marcos Alves / Agencia O Globo)
Rafael, corretor de imóveis, falsificou o contracheque de seus clientes para dar uma “ajudinha” no financiamento da casa própria (Foto: Stefano Martini/Agência O Globo)
Após a morte da mãe, K. falsificou a assinatura dela num documento, com data retroativa, para não ter de fazer inventário (Foto: Stefano Martini/Agência O Globo)
Ricardo falsificou a carteirinha da faculdade para continuar pagando meia-entrada em eventos: “Ficou melhor do que muitos documentos verdadeiros” (Foto: Marcos Alves/Agência O Globo)
Ao avaliar a relação do brasileiro com as leis, a pesquisa constatou que 81% dos entrevistados afirmaram que, sempre que possível, escolhem dar um “jeitinho” em vez de seguir as normas.
Da mesma forma, 76% acreditam que é fácil desobedecer às leis. “Em geral, quando não é algo que possa prejudicar muita gente, as pessoas (que cometem delitos) dizem ‘eu já fiz’. Sentem que seus pares não vão recriminá-los”, disse Luciana. “Isso é uma percepção ruim, porque é contra a lei. Há uma relação com a norma que é a de não levar muito a sério, e isso pode extrapolar para tudo.”
Todos os domingos, o publicitário Léo, de 24 anos, coloca a camisa de seu time para assistir aos jogos de futebol acompanhado do pai. Entre uma cerveja e um aperitivo, eles assistem ao pay-per-view. Vez ou outra, algum amigo participa do encontro. No caso deles, o “pay” (pagar) não existe, apenas o “view” (assistir). Afinal, Léo não paga pelo canal — tem uma ligação clandestina. “Vi os preços da TV a cabo, achei exorbitantes e conversei com meu cunhado, que tinha esse aparelho e me indicou”, afirmou. Há sete anos, ele gastou cerca de R$ 800 num desbloqueador. Assim, paga por um pequeno pacote de canais, mas consegue assistir a uma gama maior. “Se a mensalidade para um pacote de jogos fosse R$ 50 ou R$ 60, seria um preço mais justo”, disse. Afirmou, categoricamente, que não sente culpa. “Se fosse mais barato, aí sim sentiria culpa, por ser uma opção que é mais de caráter do que financeira. Além disso, se fosse mais barato, eu escolheria não ter um gato.”
Sempre há uma justificativa moral por trás do delito.
Para Léo, o preço que paga pelos poucos canais de sua assinatura é justo. Ao ser questionado sobre se o que faz é parecido com a grande corrupção dos políticos, disse que é completamente diferente, o que ele faz não afetaria outras pessoas.
Na teoria.
“Na corrupção, a pessoa está aceitando um valor, normalmente de milhões, de que ela não precisa. Ela está afetando milhares de vidas”, disse. “Acho errado, mas você não tem outra opção, senão, não consegue assistir a um jogo.” Há, sim, outras duas opções, as corretas: pagar o preço pedido, como milhares de assinantes, ou simplesmente não usar o serviço.
Ter uma TV a cabo pirata pode dar reclusão de um a cinco anos e multa.
Uma pesquisa da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (Abta) feita em 2015 aponta que naquele ano havia 4,5 milhões de usuários piratas, número maior que em 2016 e 2017, quando a projeção era de 3,3 milhões — queda que se deve a medidas tecnológicas.
Questionada sobre os altos valores, a Abta afirmou que no Brasil o pacote básico, com preço médio us$ 19,49, mantém-se abaixo da média mundial, de us$ 39,89.
Quando se formou na faculdade, o designer Ricardo, de 25 anos, notou que a carteirinha de estudante venceria no ano seguinte. Por frequentar shows de bandas internacionais, disse que falsificar o documento foi sua saída para continuar pagando meia-entrada. Ele está ciente de que parte do alto preço dos ingressos para shows no Brasil é justificada pela obrigatoriedade da meia-entrada. “Pagamos metade do dobro em um ingresso”, disse.
Não foi difícil para Ricardo fazer uma falsificação de boa qualidade.
“Tive acesso a uma impressora bacana, com papel de adesivo fotográfico. Refiz a arte com uma validade nova, recortei e colei por cima do plástico antigo”, disse. Segundo ele, a qualidade é tão boa que, como não há padronização entre as universidades, seu documento se parece mais com um verdadeiro. “Como garantia, e para conferência, também altero a data de um comprovante de matrícula para mantê-lo atualizado. Mas, no fim das contas, usei poucas vezes: a maioria dos eventos não pede o documento para entrar”, disse.
Na percepção de quem as pratica, certas atitudes ilegais, ou mesmo criminosas, são inofensivas e não prejudicam — quase — ninguém.
Na prática, os delitos acarretam soluções mais burocráticas para tentar remediar as fraudes cometidas. É um ciclo que se retroalimenta. Além disso, contribui para minar o sentimento de esperança de quem anda na linha, à medida que as pessoas se deparam com o sistema corrompido.
Ainda que em níveis diferentes, a advogada Marina Coelho Araújo, especializada em Direito Penal Econômico e professora do Insper, avalia que corromper com a intenção de obter uma pequena vantagem é tão ruim quanto para ganhar grandes valores — afinal, qual é o limite que separa essas atitudes e quando elas começam a extrapolar? “Se não acabarmos com a pequena corrupção, não vamos acabar com a maior. É preciso um trabalho de prevenção para que a sociedade melhore, uma mudança cultural. No entanto, obviamente enxergo que a reprovabilidade de uma e de outra é diferente”, afirmou.
A publicitária Cibele, de 25 anos, tinha medo de falhar no exame prático da autoescola, de ficar nervosa e errar as manobras. “Me diziam que era uma ‘máfia’, que era impossível passar sem pagar”, contou.
Não pensou duas vezes e pagou propina para obter a carteira de motorista na própria autoescola, mesmo com um mau desempenho no dia da prova. “Ainda fiquei com o medo de ter caído em um golpe, de pagar e mesmo assim reprovar”, lembrou.
Cibele conheceu outras pessoas no dia da prova prática que, sob a mesma justificativa, não queriam perder tempo e dinheiro para tentar uma segunda vez. E reconhece o crime. “Pagar a carta também é uma forma de corrupção, não tem diferença.
Os dois lados são culpados. O funcionário, por quebrar as leis e se aproveitar de uma autoridade, e quem paga também tem culpa por aceitar essa condição”, observou.
As atitudes condenáveis dos políticos são as justificativas mais usadas para isentar de culpa quem cometeu um deslize.
“Nas justificativas usadas pelo cidadão comum, os políticos funcionam mais como álibi do que como mau exemplo”, afirmou Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação e professor de ética e filosofia política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Para Ribeiro, parte dos políticos não é parâmetro de boas maneiras.
Assim, para ter o direito irretocável de criticá-los nos almoços familiares, de postar protestos contra a corrupção em redes sociais ou mesmo para fazer discursos para amigos, é preciso evitar praticar atos irregulares.
Ainda que sejam de repercussão infinitamente menor, tais atos aproximam o cidadão do personagem-
alvo de suas críticas.
Revista Época
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