sábado, 20 de outubro de 2018

QUEM FOI FELÍCIA LEIRNER QUE POSSUI UM JARDIM REPLETO DE OBRAS SUAS EM CAMPOS DO JORDÃO?

GISELDA LEIRNER | 

Felícia Leirner, minha mãe
De minha mãe, Felícia Leirner teria muita coisa para escrever. Poderia falar do ponto de vista afetivo ou sobre seu trabalho vigoroso como escultora. Poderia falar sobre impressões que ficaram gravadas em minha memória. Como não ficarei com nenhum ponto de vista em particular, vou resvalar para a memória, fazendo um percurso ao passado.
Felícia nasceu em Varsóvia, em 1904. Sua mãe, Sheindla Eichenbaum, e seu pai, Pincus Eichenbaum, também eram poloneses. O pai passou a vida toda debruçado sobre os livros da sabedoria talmúdica. Eu o descrevi em um dos meus livros como um velho atarracado, de barbas ruivas e olhos azuis, em paz com Deus mesmo quando alguns de seus filhos morreram.
Foram sete ao todo, e ficaram só Felícia, Ana, Jacub e Louis. Esse último, tendo se tornado americano, passou a ser chamado de Uncle Lou.
Jacub, grande engenheiro inventor de máquinas para a indústria pesada e também homem de vasta cultura, casou-se com uma alemã que viria a lhe dar dois filhos. Ela e um dos filhos se tornaram nazistas. Jacub, então, fugiu com o filho menor para a Itália, onde foi escondido por uma mulher cristã e italiana durante toda a guerra. Finda a guerra, casou-se com ela. O filho conseguiu ir para os Estados Unidos e Jacub viveu seus últimos anos em Milão.
Sheindla era uma velha senhora que teve a coragem de deixar seu país, sua família e seu marido, para acompanhar a filha em sua nova vida. Ela chegou com minha mãe em São Paulo em 1926. Meu pai, Isai Leirner, já aqui se encontrava para recebê-las.
Sheindla nunca aprendeu o polonês nem o português. Falava o ídiche e foi com ela que aprendi a língua dos judeus, mantive a cultura e os conhecimentos de minha origem. Felícia e Isai falavam o polonês e rapidamente aprenderam o português, que passou a ser a língua usada em casa.
Algum tempo depois de sua chegada ao Brasil, Felícia e Isai se naturalizaram brasileiros. Judeus, sempre se consideraram brasileiros. Nunca mais voltaram à Polônia, mesmo quando faziam viagens à Europa.
A Polônia tinha lhes deixado um gosto amargo, pelo preconceito antissemita e pela intolerância que ali existia e continuou existindo mesmo depois da guerra. A cidade de origem, Varsóvia, foi deixada para trás no começo do século XX.
Como escreveria mais tarde a grande amiga de Felícia, a romancista Maria de Lurdes Teixeira, “Varsóvia era uma cidade debruçada sobre as águas do Vístula, capital do país das vastas planícies, das florestas de olmos, faias, bétulas e pinheiros”. Cidade que, aos olhos da menina Felícia (Fayga, em sua língua nativa; ou Faygucha, para a família), em tudo parecia monumental.


O bulevar Cracóvska, os palácios em seu esplendor barroco, os jardins como o Krasinski, o Saski. Os teatros, os museus, as bibliotecas, a ópera, as salas de concerto, a filarmônica – a música. Sim, sobretudo a música. No apartamento acanhado da rua Dzielna a vida era difícil, parcos os recursos. Mas não faltava música. Fayga chegou a ser primeiro soprano lírico da Ópera de Varsóvia.
Ao chegar ao Brasil, meu pai – que fora estudante em Varsóvia – precisava não só se sustentar como comprar as passagens de navio para Sheindla e Felícia. Não tendo ofício, foi aprender a trabalhar em uma máquina, como operário em uma malharia, das poucas que já existiam no Bom Retiro.
Ali se instalaram, em uma pequena casa na rua Júlio Conceição. Pouco restou, no Brasil daquele começo de século xx, da vida pobre, porém culturalmente rica que Felícia tivera na Polônia. Meu pai vinha de uma família da alta burguesia que nem o ídiche conhecia. Tinha estudado em escolas importantes, participado de conferências e encontros de associações literárias, os chamados“Werein”. Frequentava a Ópera de Varsóvia, onde conheceu minha mãe. Felícia, por ser muito loira e de olhos azuis, era sempre confundida como de origem não judaica.
Em seu começo de vida no Brasil, o imigrante Isai Leirner passou a ser um operário, sem dinheiro ou condição social. Minha mãe deixou de cantar para sempre. Só cantava em casa. Lembro-me de sua belíssima voz de soprano lírico. Quando melhoraram de situação econômica, mudaram-se para uma casa na rua Ribeiro de Lima, em frente ao Jardim da Luz. Tinha dois andares.
O térreo era ocupado por nossa família. Ali, vivíamos eu e meu irmão Nelson. Adolfo nasceu mais tarde, gozando de uma situação um pouco mais amena. No fundo do quintal, meu pai armou uma oficina de malharia, com duas máquinas que eram chamadas de retilíneas. As circulares, bem mais imponentes, apareceriam depois.
Assim fomos crescendo. Minha mãe ajudando meu pai, costurando e bordando nossas roupas. Felícia era exímia bordadeira e tinha muita habilidade com o tricô e o crochê, habilidades manuais que nunca abandonou mesmo já bem velhinha, em seu luxuoso apartamento em Higienópolis. Conforme prosperavam, meus pais também iam fazendo amigos, todos judeus poloneses que continuavam a chegar em fuga da penosa situação europeia.
Muitas vezes acolhiam um ou outro casal em casa, até que conseguissem situação mais confortável.
Mudaram-se para uma minúscula casa em estilo normando na rua da Consolação. A casa era realmente minúscula. Mal cabíamos todos ali, mas o jardim tinha sessenta metros de comprimento. Isso e mais o fato de ser no Jardim América contribuíram para a escolha. Minha mãe sempre teve uma forte relação com a natureza. Lembranças de suas estadas nas casas dos tios, donos de florestas, onde trabalhavam como madeireiros, em Lukow.
Lembranças da casa com seus depósitos nos grandes terrenos de fundos, onde secavam a madeira, que estalava fogos à noite. Isso e mais a dança iluminada dos vagalumes deixaram em Felícia uma eterna saudade.
Quando ainda morávamos na casinha normanda, Felícia adoeceu gravemente e, ao acordar depois de uma cirurgia, ainda sob efeito do clorofórmio (usado como anestésico naquela época), teve uma visão que transformou sua vida. Vultos negros, de longas barbas, longilíneos, debruçavam-se sobre ela, dizendo: “Ela não vai morrer porque ainda tem uma tarefa a cumprir.”
Quando acordou, a pergunta constante que passou a fazer parte de seu cotidiano era: Qual tarefa teria de realizar? Não sabia. Assim, passou um longo período indagando, enquanto andava pelo comprido e estreito jardim de nossa casa. Lembro-me de sua fisionomia angustiada na procura da resposta para uma e única questão: qual seria a tarefa para a qual estava destinada?


Naquela época, eu já tomava aulas de desenho e pintura com Yolanda Mohalyi. Acompanhou algumas aulas, mas não estava satisfeita. Yolanda, então, indicou-lhe uma artista magnífica, nunca devidamente reconhecida: Elizabeth Nobiling.
Elizabeth era ceramista e escultora. Morava no bairro do Sumaré, onde expunha todos os seus belos trabalhos em terracota. Fui junto com minha mãe a essa primeira visita. Felícia teve ali seu contato inicial com o barro, material que a fascinou imediatamente. Sentia-se bem moldando aquela argila macia e, ao mesmo tempo, resistente. Foi seu começo como escultora.
Um dia, ao passar pelo canteiro de obras do que viria a ser o grande Monumento às Bandeiras, no Parque do Ibirapuera, resolveu entrar no barracão-ateliê onde Brecheret trabalhava. A mulher delicada, loira e bem vestida queria tomar aulas de escultura. Brecheret jamais tivera alunos nem teve outros além de minha mãe. O grande escultor (sabe-se lá o que lhe passou pela cabeça) mandou-a sentar-se no chão, deu-lhe um monte de argila e chamou uma menina que por ali perambulava para que posasse para minha mãe.
Foi assim que nasceu Felícia escultora. Felícia estudou com Brecheret durante alguns meses até o dia em que ele disse: “Você pode ir. Já está pronta para enfrentar seu caminho sozinha.”
E assim foi. Meu pai construiu um enorme ateliê no fundo do belíssimo jardim de nossa casa, que já era a grande mansão branca no Jardim América.
Nasceram ali, nos anos de 1950, seus primeiros trabalhos. O começo de um longo caminho que terminou com as últimas esculturas que fez para o seu museu em Campos do Jordão, com o conjunto escultórico de mais de uma centena de trabalhos doados ao Governo do Estado de São Paulo.


Cumpriu assim a artista, em mais de quarenta anos de faina exemplar, a tarefa que lhe foi outorgada pelo destino, conforme a premonição daquela visão já diluída na perspectiva do tempo e do espaço. 
Felícia nunca esqueceu sua origem e manteve um diálogo constante com suas raízes. 
Aos noventa anos de idade, escreveu:

Quando eu era menina, o mundo não era meu, e eu não
era do mundo.
Eu não dormi e não sonhei.
Eu não era tempo e não era cor. Ao pensar, também não
era eu.
Agora,
com noventa anos, o mundo é meu, e eu sou do mundo.
Durmo e acordo. Sonho e pergunto: para onde foi meu
presente, onde está tudo que amei,
sofri, e o tempo o que é?
Será que nasci só para perguntar e acreditar, sonhar na eternidade sem fim, e sempre morrer… morrer.

Com a mesma amorosa minúcia com que tinha esculpido imponentes formas tridimensionais, Felícia escreveu mais de duzentas páginas inspiradas.
São singelas e poéticas reflexões sobre arte, amor, Deus, vida, natureza e tantos outros temas que lhe ocuparam o pensamento quando não mais tinha forças para modelar a argila. Aqui está uma seleção deles, em homenagem e memória.



Publicado em quinta-feira, 3 de agosto de 2017.
GISELDA LEIRNER é romancista e contista.
Fonte: Agulha Revista de Cultura.
Página ilustrada com obras de Felícia Leirner.

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