Jornalista português afirma que chamar cidadão não condenado de “criminoso” é um abuso.
Manuel Carvalho criticou declaração do ministro Sergio Moro sobre ex-primeiro-ministro português José Sócrates.
Em artigo publicado em coluna nesta quarta-feira, 24, o jornalista português Manuel Carvalho, do Público, criticou declaração feita pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, contra o ex-primeiro-ministro português José Sócrates.
Para o jornalista, chamar um cidadão não julgado e não condenado de “criminoso” é um abuso, que revela a verdadeira natureza de Sergio Moro.
“Chamar ‘criminoso’ a um cidadão que não foi julgado nem condenado é um abuso que revela a verdadeira natureza de Sérgio Moro. Um juiz-político (ou um político-juiz) que nem num país que o recebe mostra perceber o que é o respeito diplomático. E, já agora, o que é um Estado de direito pleno.”
O caso
Durante o VII Fórum Jurídico de Lisboa, o ministro brasileiro afirmou ter identificado uma "dificuldade institucional" em Portugal em fazer avançar processo contra o antigo primeiro-ministro, tal como acontece no Brasil.
Em resposta à declaração, José Sócrates afirmou que o Brasil vive uma desonesta instrumentalização do seu sistema judicial ao serviço de um determinado e concreto interesse político e imputou a Sergio Moro a alcunha de “ativista político atua disfarçado de juiz”.
Após as declarações, Moro concedeu uma entrevista à emissora Record TV Europa, onde, ao ser questionado sobre o caso, disparou: “Não debato com criminosos pela televisão.”
Artigo
Nesta quarta-feira, 24, ao publicar o artigo intitulado “Portugal é um estado de direito, doutor Moro…” no site do Público, o jornalista Manuel de Carvalho disse:
“Caso o juiz Sérgio Moro tenha esquecido, num Estado de direito existe a presunção de inocência. A menos que…”
Carvalho afirma que o ministro brasileiro tem toda a legitimidade em defender as suas ideias sobre as virtudes do Sistema Penal brasileiro sobre o português, “incluindo os méritos da delação premiada ou essa acumulação de funções que concedem ao juiz de instrução a responsabilidade de ser também o juiz que preside aos julgamentos dos suspeitos”.
No entanto, para o jornalista, o que Moro disse sobre o ex-primeiro-ministro “foi muito para lá do tolerável e tornou-o uma persona non grata”.
Confira o artigo na íntegra:
Portugal é um estado de direito, doutor Moro…
Por Manuel Carvalho
Chamar “criminoso” a um cidadão que não foi julgado nem condenado é um abuso que revela a verdadeira natureza de Sérgio Moro.
É, no mínimo, um desplante. E no máximo um desplante no limiar do agravo diplomático que um ministro da Justiça estrangeiro venha até nós chamar “criminoso” a um ex-primeiro ministro que nem sequer foi condenado em primeira instância.
Que José Sócrates seja um espinho cravado na ética republicana, que acumule um pecúlio de suspeitas capazes de legitimar o estatuto de político que todos amam odiar, que se tenha transformado no ícone maior dos vícios do regime, é uma coisa; que seja apelidado de “criminoso” na praça pública sem que a sua sentença tenha transitado em julgado (sem que se saiba até se vai haver julgamento), é outra coisa completamente diferente. Caso o juiz Sérgio Moro tenha esquecido, num Estado de direito existe a presunção de inocência. A menos que…
A menos que Sérgio Moro tenha definitivamente despido a toga de juiz para se vestir com a pele de justiceiro, uma suspeita que a forma como geriu alguns processos da Operação Lava Jato legitima junto de muitos observadores.
Porque, é óbvio, um juiz tem o dever de ser minucioso na atribuição de estatutos a terceiros. Tem de conservar a prudência e o recato sobre processos em investigação, principalmente quando está num país estrangeiro. Tem de ser capaz de manter a elevação do seu cargo e da sua responsabilidade e saber resistir às acusações como as que José Sócrates, na sua delirante visão do mundo, lhe dirigiu. Tem, finalmente, de respeitar a independência da Justiça nos países que visita, abdicando de condenar sumariamente pessoas que nem sequer começaram a ser julgadas.
Sérgio Moro tem toda a legitimidade em defender as suas ideias sobre as virtudes do sistema penal brasileiro sobre o português, incluindo os méritos da delação premiada ou essa acumulação de funções que concedem ao juiz de instrução a responsabilidade de ser também o juiz que preside aos julgamentos dos suspeitos. Pela dignidade do seu cargo e pelo prestígio que acumulou antes de acelerar o julgamento de Lula para impedir a sua recandidatura, antes de produzir uma condenação que muitos observadores internacionais consideram ser forçada face à fragilidade das provas, antes de aceitar ser ministro do mais polêmico presidente do Brasil das últimas décadas, Moro seria sempre bem-vindo a Portugal para fazer a apologia das suas ideias de justiça. O que disse sobre Sócrates foi muito para lá do tolerável e tornou-o uma persona non grata.
Estranha-se por isso a ruidosa teia de silêncio que se abateu sobre as suas lamentáveis acusações a José Sócrates. Não haver um juiz que lhe lembre o óbvio, um jurista que lhe aponte o atentado ou um governante que lhe denuncie o abuso é um triste sinal. Ninguém se quer colar a José Sócrates porque Sócrates é um activo tóxico, bem se sabe.
Mas o que está em causa é muito mais do que a ofensa a um ex-primeiro ministro sob suspeita. É um princípio básico do Estado de direito que foi atacado. É a credibilidade do sistema judicial português que é atingida – há um “criminoso” à solta, protegido pela impunidade? Logo, é um abuso de um ministro de um Governo presidido por um político cujas virtudes democráticas e valores humanistas se desconhecem por não existirem.
Chamar “criminoso” a um cidadão que não foi julgado nem condenado é um abuso que revela a verdadeira natureza de Sérgio Moro. Um juiz-político (ou um político-juiz) que nem num país que o recebe mostra perceber o que é o respeito diplomático. E, já agora, o que é um Estado de direito pleno.
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