O texto abaixo foi escrito pelo Dr. Ferdinando CIPÓ, um dos pseudônimos do Major Luiz Valio, meu avô, que também se assinava J. SEVERO, LV e outros.
"Antonio Soares da Silva era o bisavô dessa Soarada que povoa a extensa região deste município conhecida atualmente pelo nome de Bairro do Taquaral.
Por ocasião da Guerra do Paraguai, contava ele com cerca de 80 janeiros, mas o seu porte ereto, magro, apesar de não possuir nem mais um fio de cabelos e barbas pretos, infundia certo respeito aos moradores de toda a vizinhança, pois, segundo a voz corrente que circulava por esta zona, o velhinho ainda conservava qualquer coisa dos tempos da mocidade.
Com efeito, Antonio Soares foi um homem valente de uma destreza admirável e de uma coragem fora do comum.
Muitos episódios interessantes de sua vida passada eram contados, episódios que lhe valeram o título de campeão do sul da província.
Um deles, entretanto, que ouvi de meu pai, vale a pena ser contado hoje, mormente nesta época em que os paulistas são levados em conta de poltrões e tratados como gente sem ideal, sem vontade própria!
Foi numa tarde límpida, de céu azul, varrido pela brisa mansa dos nossos dias primaveris
O velho Soares voltava para o seu reduto, depois de ter estado a fazer pequenas compras nas bodegas destas plagas, há poucos meses elevadas à categoria de paróquia por decreto do Bispado de São Paulo, com aprovação de Sua Majestade, o Imperador.
O ano era de 1.867.
Com sapiquá de dois compartimentos às costas, recheado de pequenos volumes de mercadorias, ele caminhava, encostando-se a uma espada velha, carcomida pela ferrugem, com laivos de verniz de fumeiro pela bainha de ferro.
Há cerca de três quilômetros de sua choupana, no lugar onde se viam os vestígios de uma tapera abandonada, um cavaleiro de bombacha e botas de cano alto, esbarrando o ginete nas chilenas, intimou o nosso velhinho a parar.
- Olá, amigo! Então, por aqui há também espadas? Sabe que lá nos meus pagos o portador dessa arma é obrigado a dar "cotejo"?
- Sei, sim, senhor. Por lá andei doze anos e...
- Deste alguma prova de saber manejar a "bicha"?
- Fui obrigado a isso, amigo! E fui de sorte, porque nunca fui ferido.
- E os seus contendores?
- Esses... Alguns deles, depois do combate, fugiram para o mato e onça "cumeu" decerto, porque não os vi mais. Mas isto foi quando eu era mocetão e meio cismado. Agora, não presto mais para nada. Esta espadinha velha só me serve para encosto do corpo enfraquecido.
- Pois eu, amiguinho, não quero saber de mais nada. Ou você me dá "cotejo" ou lhe passo umas lambadas. Para isso, a durindada do Robertão não faz luxo. Prepare-se, pois, para apanhar, e no seu lombo, velho malcriado, quero desquitar os meus patrícios.
- Pelo amor de Deus, "seo" Robertão, não me provoque assim. Não posso aceitar o desafio, porque não tenho mais jeito nem forças para pelejar. Tenha dó de um pobre velho de 80 anos que nada mais espera senão a "magra" que já lhe anda rondando a pobre vida.
Robertão era um tropeiro que vendia burros "às formigas" e a sua fama de valentão corria por toda a parte.
O próprio Antonio Soares conhecia as notícias ferozes do ferrabrás gaúcho.
Nada valeram os rogos e as desculpas, porque o Robertão, meio enfurecido, arranca da formidável e reluzente espada e grita:
- Prepare-se para apanhar, velho do diabo. Patife! Você bem mostra que é paulista e os paulistas não valem mesmo meia pataca.
- Não repita essas palavras, gaúcho dos "dianhos", porque isso é grave...
O velho tomado de cólera empertigou-se todo, joga o sapiquá e a espada ao chão e sai à procura de qualquer coisa, que achou facilmente no terreiro da tapera.
Era um sabugo endurecido pelo tempo.
De posse dessa arma, Antonio Soares enfrentou decididamente o Robertão, empenhando-se num combate que durou cerca de uma hora.
O velhote transformou-se num "lambari" e os pontaços, pranchadas e golpes do espadão do gaúcho só encontravam o vácuo e a terra, enquanto que o sabugo do "paulista patife" roçava constantemente pela garganta do adversário que ficou toda descascada.
Findo o "cotejo", o velhote, todo deslumbrante pela defesa de sua província maltratada, e sem haver recebido o menor rabisco, convidou o vencido para tomar uma xícara de café em sua choupana.
Este recusou e disse com serenidade:
- Meu caro amigo, combateste por um ideal e foste vencedor. A espada nada vale perante essa força formidável. Entrego-te a minha para que ela daqui em diante seja companheira da tua velhice. Viva São Paulo!...
- Viva o Rio Grande! - retorquiu Antonio Soares - porque somos irmãos!
E separaram-se."
- Transcrito em linguagem atual do extinto jornal "O Progresso" de 11 de outubro de 1.931.
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