sábado, 20 de julho de 2013

BRASIL DE MONTEIRO LOBATO



Depois de Washington Luis Pereira de Sousa, foi presidente do Brasil o advogado Dr. Arthur Bernardes, governando de novembro de 1.922 a novembro de 1.926.
Foi em agosto de 1.924 que ele recebeu uma carta do grande escritor Monteiro Lobato, hoje peça integrante do acervo do Apesp, a qual passamos a transcrever aqui.
É importante que os estudantes e aqueles que desconhecem a psicologia de um povo e do poder que o governa, possam reconhecer os tempos que nossos antepassados vivenciaram, nem que seja por simples (quiçá, um dia, até útil) comparação, constatando, pois, que a realidade de hoje continua caminhando nos mesmos moldes dos dias de ontem, como se tivéssemos nascidos, nós, os brasileiros massificados, somente para carregar as cargas de uma elite rica e poderosa que compõe o real poder no país.
Monteiro Lobato traduziu tão bem essa verdade, argumentou com tanta presteza, que chegamos a sentir um frenesi incontrolável para repassar a sua carta.
Tenha uma boa leitura:

São Paulo, 9 de agosto de 1.924
Dr. Bernardes:
Hoje, dia do seu aniversário, trago com as minhas felicitações, o meu presente: esta carta.
Resumo nela uma série de observações sobre o estado de espírito do nosso povo, que de há muito estudando venho com a maior isenção de ânimo.
Fotografei esse estado de espírito no doloroso momento presente: fiz-me preciso e frio como máquina, para não interferir com as minhas ideias e sentimentos no trabalho de auscultação.
Sondei centenas de criaturas de todas as classes sociais, ricos e pobres, patrões e operários, gente de baixo e gente de cima.
Como a maior parte dos homens tem duas opiniões, uma de uso social e outra íntima, resultante da experiência pessoal da vida, desprezei sempre a primeira, pura máscara, e arranquei confissões à segunda, única que interessa.
Estas observações valem, pois, pela intenção com que foram feitas e pela dose de verdade que encerram.
Se o Dr. Bernardes as ler e sobre elas refletir, nalgum momento de sossego que acaso tenha, estou certo de que algo bom resultará. E é na esperança de que tal suceda que me animo a enviá-las ao homem em quem sempre me impressionou o vivo interesse patriótico de resolver os tremendos problemas que assoberbam nossa infeliz terra; o homem que a posteridade cognominará o presidente-mártir, pois nenhum sofreu maiores amarguras, nem foi tão sarjado pela calúnia, nem tão insultado - e menos compreendido em suas honestíssimas intenções.
As minhas conclusões são as seguintes:
O estado de espírito do povo brasileiro é de franca revolta. Tomei médias e creio não errar, orçando em 90% o índice das criaturas que, quando se abrem na intimidade, esse estado de revolta. Do espírito de revolta ao espírito revolucionário a transição é mínima. basta que deflagre um movimento militar para que a passagem se opere e o revoltado se transforme em revoltoso. 
Revoltoso platônico, é verdade, mas perigosíssimo, pois dará à explosão a força moral das suas simpatias, e a material sendo-lhe possível.
Esta média elevadíssima espanta-me, e posso afirmar que tem crescido sempre, notando-se até entre os empregados públicos. Abrange todas as classes sociais sem exceção, e sobretudo a classe pensante, a parte culta do país.
Verificado este estado de espírito, tratei de indagar das suas causas, usando os mesmos métodos de observação serena e meticulosa; e cheguei à conclusão de que isso se dá em virtude do completo divórcio entre a política e a opinião.
De toda a gente ouvi os maiores horrores da política e dos políticos - tida aquela como a arte de explorar o tesouro, e estes, como usurpadores indignos.
Daí o completo desinteresse da nação pela política.
Ora, sendo a política, em sua legítima acepção a arte de governar os povos, não se concebe que os cidadãos assim se desinteressem do que de tão perto lhes afeta a felicidade e o bem estar.
Por que então esse horror que a elite da nação, a sua melhor parte, a parte rica, a parte culta, a parte cérebro, a parte nobre  por excelência demonstra com tamanha franqueza?
Por que a imprensa livre - a que direta ou indiretamente não recebe favores oficiais- é tão acintosa contra todos os governos?
Por que despreza o povo a imprensa amiga dos governos, e dá apoio incondicional à imprensa oposicionista? Há de haver nisto causas mais profundas do que as habitualmente apontadas.
Neste ponto do meu estudo, as conclusões foram as seguintes:
Um vício mortal mantém cada vez mais vivo o divórcio entre o governo e a elite do país, vício tão grave que se não for corrigido a tempo arrastará o país à completa ruína.
Esse vício é o nosso regime eleitoral de censo baixo. 
A experiência dos povos demonstra que o sistema representativo só dá benéfícos resultados quando o regime é de censo alto. Porque o censo alto é o controle da política pela elite da nação, é o respeito à lei natural de todos os organismos, é a parte cérebro desempenhando suas funções de cérebro e a parte músculo (povo, populaça, gente rural, etc., sem cultura nem capacidade de discernimento) subordinada naturalmente ao cérebro.
As várias eleições a que assisti, assombraram-me.
Interroguei numerosos eleitores em regra tabaréus boçalíssimos, e poucos encontrei que soubessem sequer o nome do candidato em quem votavam; nenhum vinha às urnas espontaneamente no cumprimento livre de um dever cívico; este vinha em troca de um chapéu novo ou de uma nota de 50$000, aquele por ordem de um patrão ou cabo qualquer.
Em nenhum desses indivíduos notei capacidade natural de voto; tinham apenas a capacidade artificial que a lei concede. Mas como a lei não outorga inteligência, cultura, discernimento a quem não os possua de fato, essa capacidade artificial representa uma grosseira mentira  de funestas consequências.
Ao lado dessa massa bruta, desse músculo inconsciente ao qual a lei dá funções de cérebro, mas que permanece músculo, visto como acima das leis humanas estão as leis naturais, ao lado dessa multidão ignara verdadeiramente bestial, vi a elite do país, a parte culta, a parte cérebro, a parte pensante, a parte nobre por excelência conservando-se na mais rigorosa abstenção!
De modo que entre nós vota quem não tem direito natural de voto, porque não possui capacidade natural de voto; e não vota justamente quem devia votar, isto é, quem possui a capacidade natural de voto, com base na cultura e no discernimento!
Como consequência imediata deste absurdo, temos a política, a nobre arte de governar, transformada (ar-se) em monopólio dos políticos, isto é, dos homens que fazem da política profissão e meio de vida.
Como a massa bruta que elege não tem discernimento para eleger, o político, no mau sentido, apossa-se dela e fá-la um passivo instrumento referendatário para a sua permanência no poder.
E surge o mal tremendo do censo altíssimo: controle de tudo por parte de um grupo cuja mira fica sendo uma só: - não cair.
Fecha-se, destarte, a carreira política a todas as vocações, a todas as forças novas.
Não há mais ventilação possível.
Não há mais renovação possível.
Há apenas uma classe que se cristaliza em casta.
A admissão na política não procede mais da eleição e sim da escolha dos que estão na posse da máquina.
A maior capacidade que surja não consegue fazer-se eleger pela força das suas ideias e só penetrará na política se de cima lhe derem licença.
Assim é e assim será enquanto durar a funesta inversão de valores, que transfere a faculdade de eleger para o músculo e a retira do cérebro.
Pergunta-se: - Mas por que a elite não concorre às urnas? Por que foge de cumprir esse dever de todo cidadão?
A resposta é rápida: - porque considera absoluta inutilidade, ela, minoria consciente, lutar com a massa bruta inconsciente, que é maioria.
No corpo humano também se o cérebro na balança quisesse apostar em peso com o músculo, claro que seria vencido.
O raciocínio geral é este: se meu voto estudado, ponderado, calculado, livre, tem que ser anulado pelo voto do meu criado, que é um imbecil sem discernimento nem cultura, prefiro ficar em casa. 
E não há outro raciocínio no caso.
Desse modo temos automaticamente afastados das urnas justamente os homens da capacidade natural de voto.
Neste ponto, tornam-se claras as razões do divórcio entre os governos e a parte nobre do país.
Ela tem os governos em má conta e despreza-os, justificando-se ainda com os péssimos resultados colhidos em tal regime.
O Brasil está praticamente falido, não tem instrução, não resolve nenhum dos seus problemas vitais e irá ao esfacelamento se uma reforma radical não detiver esta marcha de coisas.
Este divórcio está de tal forma agravado, que se torna possível o fato assombroso acontecido em São Paulo: um governo cai integralmente derruído em todas as suas peças e ninguém surge a defendê-lo!
Numa população de 700.000 almas, colocam-se, ao lado dela, nos Campos Elíseos, setenta pessoas - um por dez mil.
Logo depois esse governo reentra em funções e é recebido seca e friamente. E o povo não tinha a menor simpatia, louvando-lhe sem reservas os seus primeiros atos.
Mas era governo...
As tropas legais desfilam pela cidade e o povo não as aclama como libertadores. Silêncio mortal. Silêncio de desapontar. Indiferença absoluta. Exército alemão entrando em Paris...
Por que?
Porque governo revolucionário, ou legal, para o povo é tudo um, já que nenhum é livremente escolhido por ele.
Este fato aterrorizou-me.
Vi a possibilidade de uma subversão completa da ordem do país inteiro, como se deu na Rússia, com o cortejo infinito de sofrimentos e horrores que as convulsões revolucionárias acarretam.
E pus-me a refletir no meio prático de evitar a catástrofe.
Interroguei, indaguei, conversei com grande número de pessoas cultas sobre o curioso caso e afinal consegui apreender a chave do problema.
Na opinião geral, o remédio está na adoção do censo alto e consequente afastamento das urnas da massa bruta, sendo o meio de conduzir a isso um só: o voto secreto.
A princípio não compreendi o alcance desse remédio e relutei grandemente em ver nele as virtudes que tanto entusiasmavam os seus adeptos. Mas à força de pensar no caso, abriu-se-me o cérebro.
O voto secreto opera o milagre de trazer consigo o censo alto. Opera a seleção, que é mister, afastando o eleitor inconsciente ou venal e atraindo o voto livre e consciente da elite do país.
Que interesse tem em votar, sob o regime do voto secreto, o meu criado, que é um imbecil, se ninguém lhe impõe esse ato ou não lho paga?
Impossível como se torna o controle da votação, eliminado este, ipso facto, o voto por pressão e o voto por dinheiro; e como os eleitores atuais só vão às urnas movidos por esses dois motivos, claro que a elas não comparecerão jamais.
A lei os autoriza a votar, mas eles cessam de ter interesse nisso. Seu interesse era todo subalterno, não era interesse cívico, dada sua incapacidade natural de civismo. 
E temos assim afastado o músculo da comédia de fingir cérebro.  
Deixando de ir às urnas essa massa bruta, desaparece o motivo que delas afastava a elite da nação e veremos se apresentarem os homens de bem, os fazendeiros, os negociantes, os doutores, os letrados, todos enfim que constituem a parte nobre do país. 
E isto tudo automaticamente, naturalmente, sem forçar a ninguém e sem infringir essa grande ilusão do sufrágio universal, que é ainda a base das democracias modernas.
No dia em que tal acontecer, os governos passarão a exprimir fielmente a vontade nacional, e a opinião está com eles, pois ele os escolheu com liberdade.
A política deixará de ser o que é, mero negócio de um grupo, e abrir-se-á a todas as capacidades.
Os políticos manter-se-ão à testa dos negócios públicos enquanto se conservarem dignos disso, e cairão no dia em que perderem a confiança dos eleitores.
E nesse tempo, quando um levante de soldados tentar aluir um governo, o povo pulará em massa para defendê-lo.
Ele o elegeu livremente, ele será o seu melhor guardião: - " O homem em quem votei livremente terá meu apoio em todos os terrenos. É sagrado. Encarnará a lei que eu respeito e pela qual me baterei furiosamente".
Mas posso eu tomar as dores do homem que eu não elegi? que eu não escolhi? no qual votou a troco de dinheiro, ou por imposição, a parte menos nobre do meu organismo?
Assim pensa o povo, e não pode pensar de outra maneira.
Todos os países que adotaram o voto secreto, inclusive a Argentina e o Uruguai, caíram num admirável equilíbrio político, cessando neles a fase das revoluções, porque os governos se tornaram de fato em nação direta, livre e consentida do povo, por intermédio da parte nobre, da parte cérebro desses países.
Entre nós, persiste este cancro das revoluções militares?
Por que o povo se revela tão simpático a esses movimentos, sejam encabeçados por quem for?
É porque o povo não se sente ligado ao governo e não vê diferença entre governo revolucionário e legalidade usurpada.
Opere-se o casamento, cesse o divórcio, e para esmagar levantes militares não será preciso recorrer a exército; o eleitor defenderá o seu elegido.
Como vão as coisas, vejo tudo negro.
Esta revolução não será a última, porque a revolução está na alma de toda a gente.
Reprimida aqui, ressurgirá além, e o nosso pobre Brasil não fará outra coisa senão curar feridas periodicamente reabertas.
A repressão não atinge a causa última do fenômeno. Equivale a combater a febre, em vez de atacar a causa da febre.
De que valeu a terrível repressão castilhista no sul? Cada degolado dava origem a dez futuros revoltosos - seus filhos e parentes - e a revolução lá está, em perpétua incubação, com explosões periódicas.
É preciso atacar as causas últimas do espírito de revolta, o que só se conseguirá dando ao povo o que ele quer: direito de eleger livremente, por meio do voto secreto.
Não fazer isto é incubar eternamente o ovo da revolução.
Há dois meios de realizarem-se transformações políticas.
Um, dolorosíssimo, pela revolução, como em França, como na Rússia; outro, suave, pela evolução, como na Inglaterra.
A revolução vem, quando de cima erguem muralhas contra as aspirações populares; a evolução se dá quando, em vez de muralhas, os governos preparam rampas.
O trabalhismo encontrou uma rampa, desfez-se nela como onda em praia, e a Inglaterra deu ao mundo a mais notável lição de sabedoria política.
Como é inteligente o idealismo orgânico do inglês!
Já a onda de aspirações russas só encontrou as tremendas muralhas do cesarismo, e destruiu tudo.
A meu ver, a rampa de que a nossa onda precisa é simplesmente o voto secreto, honestamente instituído, como o praticou Vitorino La Plaza.
Fora daí, só vejo remendos, contemporizações, e nenhuma solução prática.
Perdoe-me o Dr. Bernardes a audácia desta carta, mas é tão sincera, tão pura de intenções, é escrita com tal vontade de acertar, que além de perdão, merece... meditação.
Creia-me, etc.
Monteiro Lobato

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