sexta-feira, 4 de outubro de 2013

SÃO JOAQUIM DA BARRA: RELEMBRANÇAS DE UM EX-PADRE - PARTE II


"Guardo recordações indeléveis da "Folia dos Santos Reis" que, nos inícios do mês de janeiro, comemorava a vinda dos três Magos ao Presépio de Jesus.
Os tiradores de Reis, munidos da licença policial, formavam um grupo. Cada qual com sua contribuição específica.
Na bandeira, de cor azul, marchetada de estrelas de papel- alumínio, debruada de franjas douradas e coroada com um buquê de rosas de papel crepon, a estampa dos Reis, Melchior, Baltazar e Gaspar, de joelhos diante do Menino, a quem ofereciam seus presentes: ouro, incenso e mirra!
Batem as porteiras porque as Folias entram em todos os sítios e em todas as fazendas... Latem os cães assustados... Os devotos se benzem augurando-se a si mesmos fluídos benfazejos... A criançada pula de contentamento...
Retumbam em rufos os pandeiros. Gemem as violas. A caixa-surda ronca. Gritam os cavaquinhos. Os chocalhos castanholam. 
Todos correm a beijar as pontas ensebadas da bandeira.
De uma dessas Folias, a porta-bandeira era uma baiana trintona, com reboleios de chita e lenço na cabeça, com uma boniteza de colares chacoalhando com os seus saculejos. Quem recebia em sua casa a visita da Folia dos Santos Reis era abençoado. Haveria fartura na mesa. O paiol não se esvaziaria. As galinhas não morreriam de peste, naquele ano. As crias das porcas e das vacas seriam uma beleza!
As donas de casa se alegravam ao verem a bandeira dos Santos Reis em suas casas. Era a hora de pagarem as suas promessas. Corriam ao quarto e retiravam do colchão de palha de milho as esmolas "juntadas" durante o ano todo. E com que devoção depositavam-nas na tampa do pandeiro sagrado!
Mandavam seus filhos colherem no galinheiro todos os ovos. Outros corriam cercar as galinhas de promessa.
Uma mãe - magérrima e de olhos encovados - cumpria um seu voto, mandando o seu caçula entregar as mechas de cabelo cortado somente aos sete anos de idade.
O vigário de São Joaquim da Barra, enfim, entrava na partilha das esmolas. Nem poderia ser por menos! Não tivera, pois, de fazer valer o seu prestígio para obter licença do Delegado de Polícia para que a Folia dos Santos Reis entrasse na cidade?
Os tiradores se comprometiam - "palavra de homem, "seu" vigário" - serem ordeiros... apesar da pinga que bebiam em ritmo acelerado para refrescar a goela...
Certa ocasião, no cotovelo de uma estrada da roça, duas Folias se encontraram. A briga foi feia. As facas luzidias reverberavam no ar. Uma gralha gralhou uma vaia... Os contendores anuíram ao desafio... O sangue correu. Dois tiradores foram se hospedar definitivamente no cemitério. Os outros lotaram a cadeia pública.
A bandeira dos Santos Reis, encardida e salpicada de sangue, foi recolhida por mãos caridosas..."

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