terça-feira, 8 de agosto de 2017

ARTIGO DE JOSÉ NÊUMANNE PINTO

 
A República dos sem-vergonhas

"O historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927), colega de classe de padre Cícero Romão Batista no seminário de Fortaleza, não ficou famoso por causa disso, mas por uma piada, seu projeto de Constituição, que rezava, categórico: 'Artigo 1.º : Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Artigo 2.º: Revogam-se as disposições em contrário'.
Nenhum de nossos projetos constitucionais teve o poder de síntese dessa chacota, que de tão atual se tornou denúncia. 
A cada nova legislação este país se torna cada vez mais a 'república dos sem-vergonha'. E a sociedade dos otários espoliados. 
A primeira página do Estado de anteontem registrou: Câmara quer mudar delação premiada e prisão preventiva. E a notícia a que ela se refere, da lavra de Isadora Peron, da sucursal de Brasília, completou: 'Também estudam revogar o entendimento de que penas podem começar a ser cumpridas após condenação em segunda instância'.
Na mesma edição deste jornal, que se notabilizou pelas lutas pela abolição da escravatura, pela proclamação da República, contra o Estado Novo e a ditadura militar, os repórteres de política Pedro Venceslau e Valmar Hupsel Filho relataram a saga de Vicente Cândido (PT-SP) para promover uma reforma política que inclua um Fundo Partidário de, no mínimo, R$ 3,5 bilhões; o distritão, em que só os mais votados para deputado se elegem; e, last but not least, a 'emenda Lula. Esta merece destaque especial, por impedir que postulantes a mandatos eletivos sejam presos oito meses antes da data marcada para a eleição, mesmo que só venham a ter suas candidaturas registradas oficialmente quatro meses após esse prazo. 
O nome do presidenciável do Partido dos Trabalhadores (PT), no qual milita Sua Candidez, é usado como marca registrada da emenda por atender ao fato de que Luiz Inácio Lula da Silva acaba de ser condenado a nove anos e meio de prisão e proibido de ocupar cargos públicos por sete anos pelo juiz Sergio Moro, na Operação Lava Jato.
A proibição de prender quem avoque sua condição de candidato é a mais abjeta das propostas do nada cândido (claro, impoluto) relator, mas não é a que produzirá, se for aprovada pelo Congresso Nacional, mais prejuízos, em todos os sentidos, para a cidadania. 
As medidas cinicamente propostas pelo 'nobilíssimo' parlamentar produzem, em conjunto, um despautério que provocaria a aceleração do enriquecimento dos partidos e de seus representantes, em particular os dirigentes, sob a égide de um sistema corrupto e que trava a produção e o consumo, empobrecendo a Nação. 
O financiamento público das milionárias campanhas eleitorais legaliza a tunga ao bolso furado do cidadão.
Ex-sócio do presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, que não sai do País para não ser preso pela Interpol, Sua Candura-mor, o deputado ecumênico, integra o lobby a favor da legalização dos cassinos e foi um dos idealizadores da campanha de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da Câmara. 
A reforma ressuscita uma ideia que nunca pareceu ter muito futuro e sempre foi apregoada pelo presidente Michel Temer: o distritão. 
Trata-se da volta do tílburi ao Vale do Silício, pois reduz a pó as tentativas vãs de tonificar a democracia, dando mais força aos partidos, e estimula o coronelismo partidário, usando falsamente a modernização, confundindo-a com voto distrital.
O Estado noticiou que o patrimônio de Cândido aumentou nove vezes nos últimos nove anos (descontada a inflação no período). Neste momento, em que as arenas da Copa do Mundo da Fifa em 2014 – de cuja lei foi relator – têm as contas devassadas por suspeitas de corrupção e um juiz espanhol mandou prender o ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira, o eclético parlamentar achou um parceiro no Senado: o relator da reforma política e líder do governo Temer na Casa, Romero Jucá (PMDB-AP).
Enquanto Cândido e Jucá providenciam a engorda dos cofres partidários para garantir as campanhas perdulárias, que vinham sendo feitas à custa de propinas milionárias, a comissão especial da reforma do Código de Processo Penal (CPP) batalha pelo abrandamento da legislação de combate à corrupção no Brasil.
A reforma do CPP, que é de 1941, foi aprovada no Senado em 2010. 
Na Câmara ficou esquecida até o ano passado e foi desengavetada durante o mandarinato do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), atualmente preso em Curitiba. 
O presidente da comissão especial que discute as mudanças na Casa, deputado Danilo Forte (PSB-CE), que apareceu recentemente na lambança de Temer ao tentar atravessar a adesão dos dissidentes do PSB ao DEM, discorda de presos fecharem acordos de delação premiada com procuradores.
Forte também considera que é preciso punir juiz que desrespeite as regras da condução coercitiva, que deveria ser empregada apenas se uma pessoa se negar a prestar depoimento. 
O presidente da comissão especial parece até ter inspirado sua ideia na recente decisão de Nicolás Maduro, que ameaçou de prisão os juízes que o Parlamento da Venezuela – de maioria oposicionista e contra a Constituinte que ele quer eleger no domingo, no modelo da pregada por Dilma – escolheu para a Suprema Corte.
A reforma política de Cândido e Jucá e as mudanças no CPP propostas por Forte, aliado de Temer, evidenciam tentativas de adaptar as leis eleitorais e penais do País aos interesses pessoais de chefões políticos encalacrados nas operações, Lava Jato entre elas, inspiradas em convenções da ONU, da OEA e da OCDE contra a roubalheira geral, importadas por Fernando Henrique e Dilma e agora ameaçadas pelos que defendem a impunidade de quem for flagrado. 
Esse 'acordão', que denota fraqueza e sordidez, põe o Brasil, já na contramão da prosperidade, também na trilha oposta da luta contra o roubo. 
Aqui a vergonha empobrece o portador." 
 
José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor.

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