segunda-feira, 11 de abril de 2022

ANTES QUE TUDO FOSSE CRIADO, ELE JÁ EXISTIA



A cidade onde nasci crescia em minhas visões. Primeiro, a torre da Igreja Matriz, que de longe eu vislumbrava da estrada, quando vinha em férias escolares. Pouco a pouco, a cidade ia ocupando seu espaço na paisagem e amansava a pressa de chegar.
Estava a brincar de saudade, graças ao chá das recordações.
Descobria que mesmo o momento mais recente da vida é um momento recordado. E o mais antigo é o momento presente.
Antes que tudo fosse criado, Ele já existia. Ele e as coisas do Céu e da Terra. Ele e tudo visível e invisível.
Antes que tudo fosse criado, eu também já existia com Ele. E Ele existia comigo na unidade de todas as coisas.
Na cidade onde nasci, peguei minha essência humana.
O chão dos primeiros passos, a paisagem do primeiro olhar, o sabor do primeiro bocado, o perfume da primeira flor, assim se forma a natureza original de um ser. Infelizmente, ela será destruída pouco a pouco. E não se perceberá mais outras estrelas, além daquelas cinco que classificam hotéis, restaurantes e generais.
Com o sufoco de minha essência humana, passei a ser o obsecado caçador de mim mesmo.
Não lavei mais a alma na chuva.
Todo o amor foi em vão.
E não andei mais de costas feito criança para compreender que na vida não se vê o que vem pela frente e o que se vê já ficou para trás.
Em meio a um momento de aconchegante silêncio durante a sessão, senti com alegria e perplexidade que minha essência e minha cidade se ligavam à Amazonia através de pequena história.
Fouad, um imigrante libanês, era quem a contava.
A sua casa, no Largo da Matriz, apresentava esboços da arquitetura árabe e acrescentava mais um pouco de orgulho a seu dono.
Quando as crianças que vinham do Grupo Escolar ficavam um tempo na frente da casa, em plena admiração, Fouad alisava sorrindo os bigodes.
Entre os imigrantes árabes de minha cidade, ele era o soberano graças a um pouco de poder, muita simpatia e alguns exageros.
Orgulhoso, dizia que seu irmão, que viera com ele do Líbano no mesmo navio, tornou-se cacique de uma tribo do Amazonas.
Ninguém se atrevia a rir, questionar a veracidade da história ou lembrar que não era mais novidade. Fouad se esquecia de quantas vezes contava a mesma história para as mesmas pessoas.
Sua voz troava igual trovão. E com um sotaque engraçado, sempre trocava o P pelo B: bamonha, bintassilgo, baróquia.
Pausadamente, dizia:
--- Meu irmão era mascate na Amazônia. Sair de barco com mercadorias. Vender para seringueiros. Faltava dinheiro pra pagar? Aceitava borracha. Meu irmão queria aventura. A gente veio pra cá, ele pra lá. Um dia barco de meu irmão afundou. Mercadorias boiaram. Indios pularam rio, pegaram meu irmão, pegaram mercadorias, trouxeram tudo para terra firme. Depois, dançaram pra meu irmão. Pensaram que era deus. Virou cacique. Ensinou jeito de fazer cintos e bolsas de couro, jeito de fazer comida árabe, jeito de assar carne no espeto. Mais de dez anos demorou pra patrício amigo achar meu irmão na selva. Graças a Deus.
Em sua casa, sempre aberta, Fouad recebia os que vieram com ele pelos mesmos caminhos e também aqueles que os receberam fraternalmente numa terra estranha.
Comemorava com grandes festas sua chegada ao Brasil. Uma delas, eu e meu tio menino vimos pela janela.
Inesquecivel aquela variedade de pratos muito bem arrumados sobre a toalha de linho bordada a ouro.
Em volta, homens, mulheres e crianças dançavam de mãos dadas. Giravam, giravam e num movimento único avançavam até a mesa e recuavam. Iam e vinham sem nada apanhar. Pareciam desafiar brincando o pecado da gula.
Sob os efeitos da Ayahuasca, eles chegavam a minha memória e se transformavam em imagens quase palpáveis: Hadad, Jamil, Jacó, Dib, Mateus, Salomão, Calixto, Souhel, Hakim, Nadine.
Todos eram alguns de meus pequenos grandes heróis. Instintivamente as crianças sentem em alguns momentos e em algumas pessoas centelhas da luz divina. E adoram as pessoas e esses momentos.
Salomão era center-alf do time de futebol, num tempo em que as pelejas entre as cidades criavam emoções de batalhas campais. O grande recurso de Salomão, quando os adversários ameaçavam perigosamente sua cidadela, era chutar a bola para alturas onde só os urubus alcançam. Tão alto subia a bola que havia tempo de reposicionar a defesa diante dos atacantes. Ou sentar em campo, descansar, beber água, conversar com os torcedores. Fouad, em seus exageros, falava de um jogo em que o adversário, que perdia por Um a Zero, procurava quase em desespero, a pouco tempo do final do jogo, desfazer a desvantagem com ataques seguidos, em massa, todo o esquadrão na linha de frente, com a única exceção do goleiro. Acuado diante de tamanha pressão, Salomão acertou o mais formidável de seus chutes. A bola subiu tanto que nunca mais se viu. E como era a única bola disponível, a peleja acabou e Salomão foi carregado em triunfo pelos companheiros de time e torcedores.
Dib, outro de meus heróis, eu nunca soube se era alto ou baixo, gordo ou magro, porque seu sorriso chegava à frente de qualquer outra apreciação. Dentes inabaláveis. Os únicos capazes de quebrar uma perna de cabrito, depois de dessossada a carne e servida. Era o que se dizia no Largo da Matriz e Dib sorria com aqueles dentes tão fortes, mas incapazes de morder o mundo.
O Suehl, de santíssima bondade, atrás do balcão de seu bar, numa das esquinas próximas da Igreja, acompanhava com olhar de muita mansidão o movimento dos domingos e feriados. Mais de um menino levou sem pagar picolé de groselha ou abacaxi que ele preparava numa máquina barulhenta. Suehl fingia nada ver porque eram meninos que viviam numa estufa abandonada com suas famílias indigentes. A bondade e humildade do Suehl diziam ter vindo de um acidente que sofreu quando menino de uns cinco anos. Ele caiu na privada, que era um pequeno compartimento que se erguia no fundo dos quintais das casas, com uma porta apenas. Dentro, tabuas estendidas, com um pequeno vão quadrado, cobriam um poço cavado no chão. De cócoras sobre aquele vão, homens, mulheres e crianças praticavam o único ato humano que só os muito loucos não se importam se for a céu aberto. Suehl, sem que ninguém visse, foi sozinho até a privada e, como havia uma tábua solta, caiu no buraco. Foi salvo pelo seu pequeno vira-latas, que de tanto latir atraiu todos para a casinha (assim se falava). Encontram o corpo leve de Suehl a flutuar na densidade da matéria em que caíra.
Mateus morava perto da casa de Suehl. Sabia lidar com cordas e laços. No dia do acidente, foi quem chamaram. Veio correndo e Suehl foi içado.
Hadad dividia com Joaquim Maestro, nas manhãs de domingo, a audiência no Largo da Matriz. Era o Aristófanes da cidade. Um grande e afiado satírico. Não poupava nada e ninguém.
--- Esta cidade precisa cortar o mal pela raiz.
Era uma referência ao Prefeito, um plantador de mandioca em suas terras.
Depois do acidente com o Suehl, Hadad passou a ridicularizar o cinismo e a pomposidade humana com muita graça.
Assim era um de seus discursos, numa linguagem seca e atravancada:
--- O homem sempre foi cínico e pomposo. Para não ser mais, precisa mudar costume. Grande sala não mais lugar de almoço e banquete. Novo costume é fazer na sala o que gente fazer na privada. Convida amigos. Enfeita sala. Grande festa. Pinicos de luxo, folheados a ouro. Um por um, convidados sentam no pinico. Então, dono da casa balança sininho, agradece presença e fala pra todo mundo se satisfazer à vontade. Garanto: mundo fica melhor com novo costume e sinceridade de conversa também.
Nadine.
A sua beleza adolescente, exuberante beleza, silenciava os homens quando ela atravessava a praça aos domingos para assistir a missa das dez horas.
A um palmo do meu rosto, do tamanho de um beija-flor, Nadine surgia à minha frente a dançar.
Impalpável como uma pequena fada, envolta em véus, ela acompanhava com grande graça o ritmo do derbakke e do pandeiro e a melodia de uma flauta dolente, que chegavam com a Ayahuasca aos meus ouvidos.
Procurei ficar absolutamente quieto e tranqüilo para que não se desfizesse a visão.
Nadine me revelava que dançando se agradece com o corpo as graças recebidas.
Os imigrantes libaneses deixavam na Amazônia a lembrança de que sob o Deus Sol uma alma feminina nos embala. A Terra.
Terra Mãe.
Ela dança num giro que tudo gera e a todos alimenta.
Terra mulher.
Seus véus, feitos da luz do dia ou do sereno da noite, cobrem seu ventre generoso.
A Terra espera há milênios que um peregrino passe no deserto e encontre o pé de tâmara que lhe reservou. Ou que um beija-flor venha molhar suas asas nas águas de um Oásis ainda desconhecido. Mesmo no deserto, a Terra oferece o alimento para quem está no caminho da eternidade.
Sete ventos nos empurram, além das sombras, para as sete cores do arco-iris.
A Terra Mãe nos embala nessa dança para que um dia o espírito se revele.
Eu sentia nas minhas miragens que dançar era o jeito sagrado de ultrapassar os limites da consciência ordinária. O corpo eu via como um instrumento das divindades.
Comecei a bater meus pés dentro dos sapatos, ritmadamente. Senti em meu rosto a formação de vincos que marcam os índios da floresta. Sentí a vontade de invocar a chegada do Sol para lhe render homenagem pelas quatro estações que davam à Terra a Primavera, Verão, Outono e Inverno.
Senti que a dança da Terra em torno do Sol e a dança dos homens em torno do nada é uma declaração de amor a Deus.
Em minha memória cresceu, então, uma valsa de Strauss, e meu pai e minha mãe saíram a dançar e se tornaram um e giraram com os mesmos sonhos e apertaram as mãos como dois irmãos de todos os tempos e se olharam em grande inocência e sorriram e Deus talvez estivesse a dançar com eles.
Quando eu já era homem feito e meus pais já um pouco frágeis --- minha mãe muito mais --- acompanhei os dois a dançarem um tango numa festa de aniversário. A leveza de suas almas dava ao corpo a graça de cada passo. Então, a fatalidade e a dor que o tango retrata tão profundamente transformaram-se num verso passageiro de todo o esplendor que a vida oferece.
Emocionado, a sentir na garganta aquele nó que o amor costuma dar, ouvi uma voz serena a descer no silêncio da sala. Virei meu rosto em busca daquela voz. Encontrei o mais humilde dos homens ali presentes.
Magro. Rosto fino e moreno. Cabelos negros e lisos. Olhos brilhantes mesmo sob a luz de lampiões. Não passava de um metro e setenta de altura. E se usasse trajes indianos seria tido como tal. Fiquei sabendo depois que ele deixara há pouco tempo os seringais.
--- O desamor de um filho pela mãe é o mais triste dos desamores.
A sua voz era ao mesmo tempo firme e suave.
--- A Terra é a mãe desamada. O muito querer de seus filhos sem juízo perfeito e o pouco me importa dos outros ferem seu corpo e seu espírito, trazem a dor. A Terra já está morrendo e mesmo na sua agonia nenhum de seus filhos mostra um arrependimento firme e sincero pelo mal feito. Falam seu nome em vão. Em todo canto, falam. E ela continua sendo envenenada pela ciência do mal, aquela que turva as águas e anuvia o céu. As mãos corajosas que se erguem pela sua salvação são cortadas por outras mãos. Mas, um dia, que não está longe, essas mãos que carregam a foice hão de tremer junto com a Terra. Pela última vez. Chegada essa hora, vão despencar da mesa as taças de cristal que os filhos sem juízo perfeito usam para comemorar mais um poder de cada querer. A Mãe Terra, desfeita em pó, sem nenhuma lágrima, não vai chorar com outras mães a morte pela sede na boca seca de seus filhos. E nenhuma sombra de nenhuma árvore vai cobrir os corpos estendidos no chão. Para os que chorarem de fome a Terra, sem nada mais para ofertar, estará coberta pelo lixo que antes era o luxo da insensatez humana. O luxo estará acabado. Mas, o lixo o tempo não destruirá. No desespero final, a Mãe Terra vai lamentar a sorte do irmão que mata irmão para não ser morto e que come o próprio irmão para não ser comido.
“Então, ouvi a terceira Criatura: Venha! E apareceu um cavalo baio, o nome do cavaleiro era Morte e o Inferno o seguia de perto.” (Apocalipse-6:7)

- MIGUEL ARCANJO TERRA -

In Amazônia, a Magia de Viver.

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