quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

"A AGONIA DO CINE TEATRO SÃO MIGUEL"

AS LÁGRIMAS DE UM FANTASMA
  
                                 
O extinto jornal ‘Folha de São Miguel Arcanjo’, do jornalista itapetiningano Ivo Cerqueira, publicou nos dias 22 e 29 de abril de 1.984, um depoimento de José Agnaldo Fogaça que considero como que o último suspiro do prédio que foi vendido nesse mesmo ano aos Irmãos Silva. 
Vale a pena transcrever isso:

"Um dia, ao entrar no cinema pelo portão da casa da Dona Munira, levei um susto. Havia um clarão na tela, uma luz estranha. Comentei com todos, mas quase ninguém acreditou. Algumas vezes, quando eu e o Gui-Gui estávamos baixando as carteiras - fazíamos isso, religiosamente, antes da sessão - eu ouvia a carteira da frente rangendo como se alguma pessoa estivesse sentada nela, naquele momento. O Gui-Gui nunca percebeu nada, mas acho que foi a partir daí que toda noite eu acordava sentindo falta de ar, parecendo que alguém estava me sufocando. Uma noite dessas, tive um sonho estranho com um homem que nunca conheci e nunca vi na minha vida. Sei que era o dono do prédio imponente, o homem responsável pelos meus passeios com meu pai pelas imagens de sonhos que povoaram meu tempo. Mas uma vez, quase morri com falta de ar. Foi depois disso que me interessei por ele, perguntava muito sobre ele. Me contaram que era um excelente homem, muito bondoso e principalmente que amava demais o cinema. Isso era fácil de perceber; só amando mesmo para construir um prédio daquele tamanho há quase trinta anos atrás, numa cidade tão pobre de cultura.
Uma tarde, domingo me parece, eu estava no cinema e o Minoro estava junto arrumando o aparelho de som. De repente, tudo desligado, eu ouço aquela voz cavernosa que saiu do alto-falante. Eu senti mais uma vez que ele estava lá. Mandei rezar algumas missas em louvor a ele, minha irmã também mandou.
Rezei para que ele me deixasse viver.
Rezei para que ele salvasse o cinema, porque eu também amava demais o cinema. Mas acho que já era tarde, o cinema começou afundar.
Brigas e mais brigas.
Eu disse para o sócio que marcava filmes: - ‘Não passe esse que o Fuad não gosta!’. Ele ria e o cinema afundava.
Numa quinta-feira, eu, o Toninho e o Lau, viemos esperar o ônibus que ia trazer o filme ‘Coisas Eróticas’.
Olhando para o cartaz, eu pensei:- ‘ O Fuad não está gostando’!
O filme não veio e quando fomos avisar o Beto e o Jorginho estava tudo escuro dentro do cinema. Um deles me disse:- ‘ Entre, fique quieto, que apagamos as luzes para assustar o Gui-Gui’. Ficamos no escuro observando. Ele entrou como de costume, viu a luz apagada, pegou o farolete e foi sozinho até o porão atrás da tela. De repente, saiu gritando. Luzes acesas, corremos e fomos ver o que tinha acontecido.
- ‘O homem, o homem!’- disse ele.
Eu já sabia quem era e perguntei assim mesmo como era ele.
- ‘Careca’- respondeu o Gui-Gui. -‘ Tava de paletó’- concluiu.
Depois todos começaram a apertá-lo com perguntas e ele embaralhou tudo, mas eu sei que ele disse realmente o que viu. Eu senti um arrepio estranho. Misteriosamente, acostumei-me, virtuosamente, com o medo e convivi familiarmente com ele. Eu saía todo dia do serviço e corria direto para o cinema, algumas vezes nem fome eu tinha, tal a pressa de estar lá. Emagreci bastante nessa época. Mas o encantamento havia tomado conta definitivamente de nós, e assim, eu, o Toninho, o Jorginho, o Nehemias, o Tod, o Jefferson começamos a passar todas as tardes de domingo no cinema. Ficávamos ouvindo e oferecendo música. O som ressoava por toda a praça. Lá dentro, eu sentia bem perto de mim aquela sombra branca esfumaçada. Eu sabia quem era, mas sempre pedi a Deus para que aquela nuvem nunca se solidificasse.
Uma vez, eu e o Luiz Curiango fomos até São Paulo implorar para que eles marcassem filmes novos para exibição no Cine São Miguel.
Prometeram até o ‘ET, o Extraterrestre’.
Ledo engano!
O cinema estava devendo tudo e éramos obrigados a passar os filmes que eles mandavam e quando mandavam.
Diversas vezes tive que me esconder dentro da cabine, triste e com vergonha.
Quando conseguimos marcar ‘Marcelino Pão e Vinho’ para a Semana Santa, no meu coração reacendeu uma esperança.
Eu botei o cartaz e fiquei atrás, oculto, para ouvir os comentários das pessoas que passavam.
- ‘ Outra vez essa porcaria! Faz mais de duzentos anos que assisti essa...’
À noite, menos de vinte pessoas entraram no cinema, quase ninguém com bônus apareceu. Tínhamos pedido que a Ilda Alves distribuísse mais de cem bônus durante a aula de catecismo.
Olhei na praça, na frente da Igreja e contei mais ou menos oitocentas pessoas.
Um dia, o senhor Anatole mandou um filme bem barato. Custava cinco mil cruzeiros. O nome era ‘A Escrava do Desejo’ e pensei ser a maior porcaria do mundo. Resolvemos assistir um dia antes para que fosse revisado.
Era uma quinta-feira. O Walter estava lá, o Beto, o Gui-Gui. Apagaram-se as luzes e eu corri sozinho no salão enorme, sentando bem no meio, os outros permaneceram na cabine, alguns no mezanino.
O filme começava com a Patrícia Scalvi nua, tomando banho, e uma música linda fazia parte do cenário.
Eu pensei comigo:- ‘ Meu Deus, esse filme é bom!’. E chorei muito sozinho.
Daí, eu vi uma luz bem pequenina que saiu de dentro do filme, como se fosse um vagalume, e pousou bem na minha mão.
Uma sensação de paz tomou conta de mim e parecia que alguém me dizia:
- ‘ Fique sozinho você’.
Foi aí que resolvi fazer um empréstimo em meu nome e pagar todas as dívidas para recomeçar tudo de novo, mas foi impossível. O cinema estava em nome de outra pessoa e esta pessoa que nunca ligou para o cinema resolveu de última hora que seria o Salvador do cinema. Passou alguns filmes horríveis e transformou aquele prédio imponente em salão de forró.
Antes de sairmos pela antepenúltima vez de lá, eu e o Toninho notamos que o prédio inteiro por dentro estava molhado. Ele exclamou:
-‘ Olhe! O cinema está chorando!’
E nós dois passamos a mão na parede.
Em janeiro último, depois que os bailes cessaram, a Dona Munira me chamou e disse que eu poderia levar o resto das minhas coisas, que ainda estavam lá.
Assim, num domingo à tarde, eu, o Toninho, o Jorginho e mais um amigo entramos outra vez no cinema.
Pensei que fosse a última e olhei atentamente para tudo aquilo.
Me lembrei das pessoas que diversas vezes estiveram lá: o Gordinho, sobrinho da Dona Ana Nogueira, o seu Joaquim do Cartório, a Maria e o Airton, o seu Mário, Diretor, a Dona Sidney e seus filhos, das crianças pobres que sempre entravam de graça e de muitos outros. Lembrei-me também do Francisco e do Nivandir, dois pipoqueiros que viviam felizes, trabalhando e contando causos ali em frente.
Parecia que eu estava vendo novamente o cinema funcionar.
O Lau vendendo doces, o Marechal de lanterninha, o Gui-Gui tentando ser porteiro, o Beto operando, o Luiz, o Jorginho, o Nehemias, o Minoro, aliás, todos preocupados com a projeção, com medo que a fita cortasse ou que a energia falhasse prejudicando a exibição.
Um dos meus amigos falou:
-‘ Esqueça, ninguém liga mais para o cinema. Televisão acabou com tudo’.
Eu disse:
- ‘ Isso é mentira. Olhe a praça como está cheia; os bares lotados, e aqui vazio.Ai!’
Acordei, arranquei meus cartazes italianos da parede, peguei os vasos e pensei comigo mesmo: ‘ O cinema secou como estas flores’.
Dias depois fiquei sabendo que o cinema havia sido vendido.
Convidei o Toninho e fomos perguntar para a Dona Munira. Ela confirmou, dizendo que não agüentava mais aquilo.
Aí, num ímpeto, eu disse que tinha perdido meu talão de cheques dentro do cinema e pedi para procurá-lo. Ela arrumou a chave e pela última vez pisei salão adentro. O Toninho estava atrás e fechou a porta.
Acendemos as luzes e sentamos cabisbaixos nas carteiras do meio. De repente, uma música estranha começou a soar. As luzes foram se apagando uma a uma...As máquinas acenderam a tela e nós assistimos ao último filme.
O astro era um homem baixo, careca, de terno.
Ele começou dizendo:
- ‘ Este foi o primeiro tijolo’ - e nos mostrou a Olaria.
Saindo do nada, foi se juntando a ele, Charles Chaplin, Johnny Weismuler, Johan Crawford, Sarita Montiel, Oscarito, Spencer Tracy. Ao fundo, Joselito e Marisol cantavam. Todos pulavam e gritavam e surgiu aquele enorme prédio no meio de holofotes incandescentes. Depois, todos choraram muito e na tela apareceu “The End”.
- ‘Finja que sonhamos’ – eu disse para o Toninho.
Depois saímos.
Disse não ter encontrado nada e entreguei as chaves.
Lá na rua, o Toninho falou:
- ‘ Lembra do Ceará, quando ele veio no cinema?
- ‘ Ah! Sim, nós que insistimos para ele assitir o filme, não foi?’ - exclamei
- ‘ Claro, como poderia esquecer!’
- ‘ E o que foi então?’- insistiu o Toninho.
- ‘ Que coisa mais linda; vou trazer meus piasinhos para assistir amanhã.
- ‘ Mas ele nunca trouxe’- concluiu o Toninho

                        (The End)

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