segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

ORLANDO PINHEIRO OU O SONHO DO HOMEM QUE CAPTUROU O TEMPO.


Rápidas (Sem revisão)


Orlando Pinheiro

...Num dia destes sonhei que estava na casa de minha amiga Luiza Válio em longa conversa com ela e a simpática Rute de Assis (que depois de casada virou Garcia, não sei se minha parente ou não) e sua filha Anay, muito preparada, dinâmica com grandes idéias tanto quanto a nossa anfitriã que no meu sonho, nos recebia na mesma sala ampla da Fazenda Bom Retiro do saudoso Gijo Válio, onde amiúde íamos naquele tempo pelas manhãs dos anos setenta tomar chimarrão com ele, petiscando saborosos torresminhos enquanto mitigávamos nossa fome de conhecimento político que o veterano nos explicava de cor e saltado como esta funcionava.

...O enredo desse sonho no qual reunia sem dúvida as mulheres pensantes e arrojadas, girava em torno da curiosidade feminina pelas minhas veredas teológicas. Lembro-me bem de ter dito a elas, pouco antes de acordar, que sobre história vétero ou néo testamentária. Ou mesmo sobre hermenêuticas complicadas iríamos longe na prosa pois eram temas da minha predileção, assim como a própria filosofia pura e teologia sistemática. Eu teria muita dificuldade se o assunto direcionasse para espiritualidade, área do pensamento humano dominada por divergências entre doutrina e tradição. Foi até surpreendente para as interlocutoras essa minha esquivada. Eu sou frio na área espiritual. Um São Tomé protestante. O intelectual e o espiritual nunca andam de mãos dadas. 

...Senti nesse sonho a falta das figuras admiráveis (no estrito sentido do termo), as duas loiras mais belas da cidade. A adorável Márcia Molitor e a queridíssima Cidinha Machado. Mas, voltando à conversa, como pode um pastor de almas ter dificuldade em lidar com a essência invisível do ser humano e por isso não ter intimidade com o supranatural, o transcendente, fatores importantes de todas as religiões do mundo. Provavelmente porque o espírito seja volátil demais e por isso seja difícil de alcançá-lo com minhas mãos pesadas demais, ou teria de me despojar do tosco, parco e mísero conhecimento humano. Prova disso, a multiplicação de templos indecisos e igrejas com doutrinas diferentes dentro do mesmo conceito. Observo, na religião como um todo, a mesma ufania semelhante dos torcedores de um time de futebol. 

...Por essa razão, depois de algum tempo de caminhada, decidi me dedicar somente à docência e me engajei num Instituto de Teologia aqui de Sorocaba para lecionar História da Religião, Filosofia e Antropologia. O ministério exerço quando precisam de alguém para levar a Palavra em alguns confins desses ermos do Vale do Ribeira, onde muitos não gostam de ir porque a pobreza por lá se aflora como um retrato em preto e branco, sem retoques, um triste cenário que destoa, cujo visual não agrada quem convive sempre nas grandes catedrais.

...Não sei definir se os longos anos de bancário, quando manipulava quantias inenarráveis, tenha observado o ser humano ávido por dinheiro como principal objetivo da minha falta de sensibilidade às coisas além do mundo materialista. O homem de grandes investimentos que acorre à um banco é sempre frio e calculista, como se fosse gente de pedra, com determinação para vender a mãe, a esposa e as filhas para conseguir um centavo à mais, porque a alma, esse leve sopro do desconhecido ele já vendeu há muito tempo e nem sabe por que preço. Isso me faz lembrar a parábola do louco que abastecia seus celeiros, quando alguém lhe pergunta: “Louco, que adianta ganhar o mundo inteiro e perder-se a si mesmo?” 

...Na minha infância de menino de pés descalços, ainda em tenra idade fui conduzido por mim mesmo (ou por mãos invisíveis), ao caminho espiritual. Foi diante do altar de todos os sacrifícios por conta de pessoas benfazejas adquiri conhecimento para seguir a estrada com sabedoria com discernimento. Por isso, me julgo privilegiado, conhecedor do “ping” e do “pong”, ou seja, uma leve bolinha bailando no centro de uma mesa, na mesma velocidade, espaço, peso e medida. Como saber com exatidão qual lado é diferente. Jamais tive um ponto de tensão com a minha igreja mãe e até me levantei contra a demolição do altar-mor tradicional. Sou contra sim, ao que se apregoa por aí em todos os meios de comunicação, por conta da manipulação da mesma mídia diabólica, a qual usa de mecanismo subliminar para pregar sofismas aos pobres incautos.

...Minhas descrenças me levam a pensar que determinadas atitudes sejam criminosas, principalmente quando deparam com o despreparo de pregadores apocalípticos, vendilhões de falsos milagres ao pobre sofrido e desamparado do próprio Estado. Gente capazes de transformar templos em malfadados hospitais, fazendo da oração placebo e ao invés de aliviar as dores das pessoas simples, aumentam o fardo da culpa imputando cargas pesada de pecado feito pedras, para que o efeito psicológico tenha efeito imediato. Isso é um crime. Nossa Constituição garante a liberdade de culto... Direito ninguém discute, mas enganar humildes é outra história. Em países de primeiro mundo, esses fenômenos de cura espirituais não existem. 

...Não sei como terminaria nossa reunião festiva e afetiva no meio de amigas tão queridas que me viram crescer na liberdade das ruas de pó de São Miguel Arcanjo, varridas pelo vento sul da tarde. A presença, ainda que de forma onírica, da bela Anay me encantou pela sua argumentação precisa. Como eu vivo, penso, respiro e até sonho com filosofia, penso que está na hora de deixar de lado o campo das idéias, das éticas e dialéticas para que na realidade a gente pudesse se reunir de verdade à volta de uma panela fumegante de virado de feijão bem caipira e vaticinar como os estoicos: 

Avancemos. 

Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos.

...Até a semana.


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