domingo, 17 de fevereiro de 2013

ATÉ QUANDO, ORLANDO PINHEIRO, CHORARÁS?


Rememorando esforços
(Fragmentos do livro “Sinfonia de uma Cidade”)

Orlando Pinheiro

Quando entrei no cinema naquela noite, tive a impressão de ser transportado para um dos teatros de Las Vegas ou ao mundo das revistas de TV. O toque especial estava na decoração do ambiente em cores psicodélicas e na quantidade de pessoas com roupas extravagantes. Figuras estranhas como se tivessem saídas dos festivais de Woodstock. Rapazes com rostos barbados semelhantes a John Lennon. Moças vestidas como Jane Joplin tomavam conta das primeiras filas de cadeiras (...) Quando se acenderam as luzes do palco uma voz em “off” com efeito acústico de eco anunciou: “Está aberto o primeiro festival de música popular de São Miguel Arcanjo”. Outras luzes em medalhão se incidiram nos mestres de cerimônias: Adel Wakim Tonnous (gente de casa) e Carlos Roberto da Rádio difusora de Itapetininga (...) Foi a glória para o Guéi e para a Ejo- Equipe Jovem, formada pelo próprio, junto com os irmãos Ueda, Vadico e Osmar. O júri era composto por nove personalidades, incluindo três da diáspora sãomiguelense: Renato Cauchiolli, Auro dos Santos Terra (Lôlo) e o jornalista Miguel Arcanjo Terra (o Trincheira) articulador da Folha de São Paulo. Ao lado deles um dos produtores da RCA, que substituía Milton Carlos, irmão e parceiro da Isolda, autores de dezenas de canções gravadas por Roberto Carlos. Os ingressos do festival tinha o desenho de um cacho de uva em alto relevo realçando a inscrição: “Capital das Uvas Finas”. Foi a primeira vez que o termo uvas finas surgiu e ficou gravado para sempre na memória do povo. 
***
A ideia principal era promover um concurso de beleza entre as moças dos bairros rurais, incluindo também as representantes de classes da cidade com torcida organizada. Seria um desfile discreto ao ar livre e à noite. As moças convocadas foram escolhidas a ponta de dedo e eram ensaiadas pela Marina Brisola que nesse tempo andava envolvida com um curso de modelo e manequim. Seria uma pálida promoção, semelhante àquela de 1966, promovido pelo jornal “A Tribuna Sul Paulista” o de Embaixatriz do Turismo que elegeu Yolanda Araujo como a moça mais bela da região. No fundo a gente percebia um certo temor das meninas urbanas em concorrer com o charme , a beleza e a elegância de Mara Repke, de beleza germânica - brasileira, representante do Capão Rico (...) 
***
No sábado seguinte, pela madrugada, fomos à São Paulo nos apresentar na TV Bandeirantes. Distribuímos caixa de uvas até pros câmeras. Antes de chamarem as meninas, a apresentadora me chamou no palco e fez uma entrevista de alguns minutos. Pela primeira vez um cacho de uva dos parreirais de São Miguel, com aproximadamente dois quilos, foi mostrado para o Brasil inteiro. Expliquei com dados oficiais quando ela me perguntou sobre a produção de Ferraz de Vasconcelos. Fiz questão de contar que São Miguel Arcanjo já havia ultrapassado e muito, a produção daquele município de onde vieram as primeiras mudas (...) Em seguida entraram as meninas, a Dayse Camargo, a Zildinha Carriel (A Fiinha) e a Mônica Sanches que cantavam muito bem.
***
A cena da flagelação e da coroação de espinhos magnetizou o povo, levando-o da estupefação às lágrimas. Havia os que fixavam o olhar na cena para tentar descobrir o truque e quando assim procediam, percebiam-se envolvido com o drama (...) Toda a caminhada da via crucis foi o som de “Revérie de Schuman”. No quadrilátero da Praça Tenente Urias, onde adaptamos as 14 estações do caminho do calvário. Nosso equipamento de iluminação era pobre, a maioria feito com latas de leite ninho e papel celofane colorido, se não fosse o seu Mário nos ceder alguns refletores do Gomide(...) Havia tanta gente apinhada para ver os pregos penetrarem na mão do Arthur Trindade que protagonizava o Cristo. A gente não os decepcionou. Pregamos os cravos à vista do público. Quando a cruz foi suspensa, lá estavam os pregos salientes e o sangue vertendo “vivo” das chagas. No “consumatum est”, o Arthur deu tudo de si na interpretação ao pender a cabeça para o lado, o seu último gesto.

***

Não houve quem estancasse uma só lágrima nos olhos na hora da consagração, instante em que a hóstia foi transubstanciada e as sinetas anunciaram Jesus presente no altar, cumprindo assim a Sua promessa milenar. Do lado de fora, no alto falante do cinema, ecoou o Hino Nacional, como se a cidade inteira se rendesse naquele instante à Augusta Majestade para que o povo lhe entregasse contrito as suas dores e pobreza, como as únicas coisas que tinham a oferecer. Nesse instante, em reverência, as seis bandeiras que antes estavam confrontadas três à três, se juntaram em adoração cruzando s lanças ao alto até o final do rito quando a hóstia foi colocada numa patena de ouro. Era assim a páscoa dos estudantes.
***
...Mas os boiadeiros da minha terra gostavam dos circos de touradas, avós dos rodeios de hoje “made in Texas”. Naquele tempo não existia nem um “teco” do glamour country importado dos Estados Unidos. Havia um cavalo velho com os bagos retesados no sedém, pulando muito mais de dor do que por valentia. Uma vaca bernenta e macambeta correndo em busca de uma saída do que atrás de um pano vermelho. Dava para ver e sentir o quanto os “peões” dessas arenas circundadas por panos ralos levavam a vida, tanto quanto a dos animais trôpegos que desfilavam para a plateia de boiadeiros.
*** 
Nosso momento livre era gasto no açude do Alcindo Terra, onde a juventude afluía nas tardes de calor, para nadar e namorar oculto no bosque que circundava o lago ouvindo canções em vitrolas à pilha (...) O açude da chácara do Alcindo era o ponto de encontro da moçada sadia a quem faltava um clube de campo. A visão do proprietário e sua arte paisagística tornava o local aprazível demais O melhor... Ninguém pagava um tostão (...) Desfrutávamos desse bosque em tardes mornas observando o sol amorenando as sombras num enlevo preguiçoso quando a notícia explodiu feito uma bomba no nosso meio: “O Zizo morreu!”(...) Era dia 25 de setembro de 1969. Zizo tinha 24 anos. Naquele ano, a primavera em São Miguel Arcanjo se revestiria de tons tristemente melancólicos.
***
O Bráz da banda promovia com sua entidade festas no pátio do mercado velho. O Bráz do Zeca Marcelo sempre foi exemplo à muita gente. Os seus problemas físicos ele os suplantava dando mostras de determinação à muita gente. Conseguia realizar o que uma pessoa dita normal não conseguiria. Mantinha seus assistidos e mais uma parcela do povo carente que lhe pedia socorro, dando-lhe cobertores, cesta de alimentação e remédios.
***
Só me restava partir também. Os velhos amigos estavam mudando em busca de outros lugares. O Zé Benedito havia passado no vestibular para agronomia em Piracicaba. Era inevitável a partida do Renato Lobo, indeciso entre tecnologia e geologia. Já havia deixado a cidade o Zé Dias e o Jairinho. Quem não ousasse em se aventurar marcaria passo na mesmice do lugar. O próprio Guéi via seus festivais se esfumaçarem com a possibilidade dos irmãos Ueda irem embora, assim como o Vadico que já estava de malas prontas... Foi quando tracejei também meu plano para o futuro. Já não existia mais nada me segurando. Foi quando arrumei as poucas coisas e fui ver de perto como era trabalhar num grande jornal. Eu já estava me sentindo como um estrangeiro num mundo envelhecido. E parti pensando: “Quem bebe da água do Guapé, vai de carro e volta à pé”.
- Diretamente do face para o meu blog.

Foto: Rememorando esforços
 (Fragmentos do livro “Sinfonia de uma Cidade”)
                                                   Orlando pinheiro

      Quando entrei no cinema naquela noite, tive a impressão de ser transportado para um dos teatros de Las Vegas ou ao mundo das revistas de TV. O toque especial estava na decoração do ambiente em cores psicodélicas e na quantidade de pessoas com roupas extravagantes. Figuras estranhas como se tivessem saídas dos festivais de Woodstock. Rapazes com rostos barbados semelhantes a John Lennon. Moças vestidas como Jane Joplin tomavam conta das primeiras filas de cadeiras (...) Quando se acenderam as luzes do palco uma voz em “off” com efeito acústico de eco anunciou: “Está aberto o primeiro festival de música popular de São Miguel Arcanjo”. Outras luzes em medalhão se incidiram nos mestres de cerimônias: Adel Wakim Tonnous (gente de casa) e Carlos Roberto da Rádio difusora de Itapetininga (...) Foi a glória para o Guéi e para a Ejo- Equipe Jovem, formada pelo próprio, junto com os irmãos Ueda, Vadico e Osmar. O júri era composto por nove personalidades, incluindo três da diáspora sãomiguelense: Renato Cauchiolli, Auro dos Santos Terra (Lôlo) e o jornalista Miguel Arcanjo Terra (o Trincheira) articulador da Folha de São Paulo. Ao lado deles um dos produtores da RCA, que substituía Milton Carlos, irmão e parceiro da Isolda, autores de dezenas de canções gravadas por Roberto Carlos. Os ingressos do festival tinha o desenho de um cacho de uva em alto relevo realçando a inscrição: “Capital das Uvas Finas”. Foi a primeira vez que o termo uvas finas surgiu e ficou gravado para sempre na memória do povo.        
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    A ideia principal era promover um concurso de beleza entre as moças dos bairros rurais, incluindo também as representantes de classes da cidade com torcida organizada. Seria um desfile discreto ao ar livre e à noite. As moças convocadas foram escolhidas a ponta de dedo e eram ensaiadas pela Marina Brisola que nesse tempo andava envolvida com um curso de modelo e manequim. Seria uma pálida promoção, semelhante àquela de 1966, promovido pelo jornal “A Tribuna Sul Paulista” o de Embaixatriz do Turismo que elegeu Yolanda Araujo como a moça mais bela da região.No fundo a gente percebia um certo temor das meninas urbanas em concorrer com o charme , a beleza e a elegância de Mara Repke, de beleza germânica - brasileira, representante do Capão Rico (...) 
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   No sábado seguinte, pela madrugada, fomos à São Paulo nos apresentar na TV Bandeirantes. Distribuímos caixa de uvas até pros câmeras. Antes de chamarem as meninas, a apresentadora me chamou no palco e fez uma entrevista de alguns minutos. Pela primeira vez um cacho de uva dos parreirais de São Miguel, com aproximadamente dois quilos, foi mostrado para o Brasil inteiro. Expliquei com dados oficiais quando ela me perguntou sobre a produção de Ferraz de Vasconcelos. Fiz questão de contar que São Miguel Arcanjo já havia ultrapassado e muito, a produção daquele município de onde vieram as primeiras mudas (...) Em seguida entraram as meninas, a Dayse Camargo, a Zildinha Carriel (A Fiinha) e a Mônica Sanches que cantavam muito bem.
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   A cena da flagelação e da coroação de espinhos magnetizou o povo, levando-o da estupefação às lágrimas. Havia os que fixavam o olhar na cena para tentar descobrir o truque e quando assim procediam, percebiam-se envolvido com o drama (...) Toda a caminhada da via crucis foi o som de “Revérie de Schuman”. No quadrilátero da Praça Tenente Urias, onde adaptamos as 14 estações do caminho do calvário. Nosso equipamento de iluminação era pobre, a maioria feito com latas de leite ninho e papel celofane colorido, se não fosse o seu Mário nos ceder alguns refletores do Gomide(...) Havia tanta gente apinhada para ver os pregos penetrarem na mão do Arthur Trindade que protagonizava o Cristo. A gente não os decepcionou. Pregamos os cravos à vista do público. Quando a cruz foi suspensa, lá estavam os pregos salientes e o sangue vertendo “vivo” das chagas. No “consumatum est”, o Arthur deu tudo de si na interpretação ao pender a cabeça para o lado, o seu último gesto.
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   Não houve quem estancasse uma só lágrima nos olhos na hora da consagração, instante em que a hóstia foi transubstanciada e as sinetas anunciaram  Jesus presente no altar, cumprindo assim a Sua promessa milenar. Do lado de fora, no alto falante do cinema, ecoou o Hino Nacional, como se a cidade inteira se rendesse naquele instante à Augusta Majestade para que o povo lhe entregasse contrito as suas dores e pobreza, como as únicas coisas que tinham a oferecer. Nesse instante, em reverência, as seis bandeiras que antes estavam confrontadas três à três, se juntaram em adoração cruzando s lanças ao alto até o final do rito quando a hóstia foi colocada numa patena de ouro. Era assim a páscoa dos estudantes.
                                         ***
   ...Mas os boiadeiros da minha terra gostavam dos circos de touradas, avós dos rodeios de hoje “made in Texas”. Naquele tempo não existia nem um “teco” do glamour country importado dos Estados Unidos. Havia um cavalo velho com os bagos retesados no sedém, pulando muito mais de dor do que por valentia. Uma vaca bernenta e macambeta correndo em busca de uma saída do que atrás de um pano vermelho. Dava para ver e sentir o quanto os “peões” dessas arenas circundadas por panos ralos  levavam a vida, tanto quanto a dos animais trôpegos que desfilavam para a plateia de boiadeiros.
                                        ***  
   Nosso momento livre era gasto no açude do Alcindo Terra, onde a juventude afluía nas tardes de calor, para nadar e namorar oculto no bosque que circundava o lago ouvindo canções em vitrolas à pilha (...) O açude da chácara do Alcindo era o ponto de encontro da moçada sadia a quem faltava um clube de campo. A visão do proprietário e sua arte paisagística tornava o local aprazível demais O melhor... Ninguém pagava um tostão (...) Desfrutávamos desse bosque em tardes mornas observando o sol amorenando as sombras num enlevo preguiçoso quando a notícia explodiu feito uma bomba no nosso meio: “O Zizo morreu!”(...) Era dia 25 de setembro de 1969. Zizo tinha 24 anos. Naquele ano, a primavera em São Miguel Arcanjo se revestiria de tons tristemente melancólicos.
                                            ***
   O Bráz da banda promovia com sua entidade festas no pátio do mercado velho. O Bráz do Zeca Marcelo sempre foi exemplo à muita gente. Os seus problemas físicos ele os suplantava dando mostras de determinaão à muita gente. Conseguia realizar o que uma pessoa dita normal não conseguiria. Mantinha seus assistidos e mais uma parcela do povo carente que lhe pedia socorro, dando-lhe cobertores, cesta de alimentação e remédios.
                                          ***
   Só me restava partir também. Os velhos amigos estavam mudando em busca de outros lugares. O Zé Benedito havia passado no vestibular para agronomia em Piracicaba. Era inevitável a partida do Renato Lobo, indeciso entre tecnologia e geologia. Já havia deixado a cidade o Zé Dias e o Jairinho. Quem não ousasse em se aventurar marcaria passo na mesmice do lugar. O próprio Guéi via seus festivais se esfumaçarem com a possibilidade dos irmãos Ueda irem embora, assim como o Vadico que já estava de malas prontas... Foi quando tracejei também meu plano para o futuro. Já não existia mais nada me segurando. Foi quando arrumei as poucas coisas e fui ver de perto como era trabalhar num grande jornal. Eu já estava me sentindo como um estrangeiro num mundo envelhecido. E parti pensando: “Quem bebe da água do Guapé, vai de carro e volta à pé”.

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