quarta-feira, 22 de maio de 2013

"O TESTAMENTO"

Ladeada por duas filas de mesas, em que os escreventes se curvavam entre pilhas de papel, redigindo procurações e escrituras, a vasta sala em que funcionava o cartório do tabelião Távora estava sem grande movimento, àquela hora doce do dia. Ao fundo, em uma grande mesa, alta como um trono, o conhecido notário rubricava documentos, a pena em punho, o "pince-nez" na ponta do nariz.
Era um homenzarrão forte, moreno, barba em ponta, acentuadamente grisalha. Trepado no seu estrado, com aqueles dois renques de funcionários debruçados sobre as mesas baixas, emprestava à sala o aspecto de uma mesquita muçulmana, cujo muezim abençoasse os fiéis de rosto no chão, quando assomou à porta, recortando-se na claridade da rua, a silhueta esbelta e leve da viúva Laurentino Simões.
Andava pelos quarenta anos e era, contudo, uma das mulheres mais bonitas da cidade. Estatura mediana, rosto claro, olhos pretos e grandes, trajava um lindo vestido de luto, em que a severidade do padrão não excluía a graça do feitio. Trazia à mão uma bolsa de seda da cor do vestido, e pendurada do pulso nu, onde faiscavam os brilhantes do relógio de pulseira, a sombrinha, artística e negra, como um grande pássaro desfalecido.
Ante aquela aparição, radiosa e grave como o anjo do Sofrimento, os escreventes levantaram a cabeça, e o notário pôs-se de pé no seu púlpito, como quem vai pedir a palavra. À aproximação da moça, desceu, solícito, ao seu encontro, ofereceu-lhe uma cadeira, em um grupo que havia ao lado, e, sentando-se também, pôs-se, inteiramente a sua disposição.
- Eu sou a viúva do deputado Laurentino Simões - começou a recém-chegada, pousando a bolsa e a sombrinha sobre o sofá - O senhor o conheceu...
- Perfeitamente, minha senhora; perfeitamente... - fez o tabelião, batendo a cabeça; - dávamos-nos bastante.
- Pois,  é por isso mesmo que eu o procuro.
E abrindo a bolsa, para tirar uma nota:
- Como o senhor talvez não ignore, eu era viúva quando casei com o Florentino. Tive a desgraça de perdê-lo; e como tenho quatro filhos, e não sei onde me levará o destino, desejo fazer o meu testamento, assegurando os interesses das crianças.
- Com licença - pediu o notário, levantando-se; - eu vou tomar as notas.
E voltando com o bloco e um lápis:
- O nome, todo, da senhora?
- Alcina Tavares Simões.
- O do seu primeiro marido?
- Antônio Joaquim Barbosa Guerra.
- O das crianças?
- Marina, Leonel, Hermógenes e Judite.
- Todos do mesmo leito?
A essa pergunta de praxe, em se tratando de uma senhora casada duas vezes, Dona Alcina ficou vermelha, até à raiz dos cabelos. Puxou o lencinho da bolsa, passou-o pelo rosto, e informou, nervosa:
- Não, senhor; três apenas.
E num esforço, dominando a vergonha que a punha cor de tomate:
- O segundo, o Leonel, é do divã da sala...

In "A Funda de Davi", de Humberto de Campos. 

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