Uma carta e o Natal
RIO DE JANEIRO - Este será o primeiro Natal que enfrentaremos, pródigos e lúcidos. Até o ano passado conseguimos manter o mistério —e eu amava o brilho de teus olhos quando, manhã ainda, vinhas cambaleando de sono em busca da árvore que durante a noite brotara embrulhos e coisas. Havia um rito complicado e que começava na véspera, quando eu te mostrava a estrela onde Papai Noel viria, com seu trenó e suas renas, abarrotado de brinquedos e presentes.
Tu ias dormir e eu velava para que dormisses bem e profundamente.
Tua irmã, embora menor, creio que ela me embromava: na realidade, ela já devia pressentir que Papai Noel era um mito que nós fazíamos força para manter em nós mesmos. Ela não fazia força para isso, e desde que a árvore amanhecesse florida de pacotes e coisas, tudo dava na mesma.
Contigo era diferente. Tu realmente acreditavas em mim e em Papai Noel.
Na escola te corromperam.
Disseram que Papai Noel era eu —e eu nem posso repelir a infâmia e o falso testemunho.
De qualquer forma, pediste um acordeão e uma caneta — e fomos juntos, de mãos dadas, escolher o acordeão.
O acordeão veio logo, e hoje, quando o encontrar na árvore, já vai saber o preço, o prazo de garantia, o fabricante. Não será o mágico brinquedo de outros Natais.
Quanto à caneta, também a compramos juntos. Escolheste a cor e o modelo, e abasteceste de tinta, para "já estar pronta" no dia de Natal. Sim, a caneta estava pronta.
Arrumamos juntos os presentes em volta da árvore.
Foste dormir, eu quedei sozinho e desesperado.
E apanhei a caneta.
Escrevi isto. Não sei, ainda, se deixarei esta carta junto com os demais brinquedos. Porque nisso tudo o mais roubado fui eu.
Meu Natal acabou e é triste a gente não poder mais dar água a um velhinho cansado das chaminés e tetos do mundo.
Por Carlos Heitor Cony, na Folha, em 31/12/2017.
Enviado por Gilberto Cruvinel para o GGN
O autor faleceu aos 05 de janeiro de 2018 com 91 anos de idade.
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