Passamos a vida a inventar heróis por entre os corredores engravatados da vida.
Passamos a vida a chorar a desdita de não termos ainda mais do tudo que temos e que não interessa nada.
Vivemos a vida a inventar e a alimentar desgraças em espirais de masoquismo.
Passamos a vida a insuflarmo-nos do ar do convencimento de determos o saber.
Vivemos arredados do chamado país profundo, crentes de que a vida começa e acaba nos circuitos citadinos que frequentamos. Ou no nosso umbigo.
Não temos o hábito de cultivar o sentido do relativismo.
Daí a presteza com que nos pomos, de olhar basbaque, a admirar esses heróis de plástico com que nos polvilham o quotidiano.
Depois, de repente, estamos tranquilamente a ler o semanário Sol, e deparamo-nos com uma imagem invulgar: a fotografia de uma senhora nascida e criada numa aldeia serrana do nosso país, de 94 anos, que traz, rasgada na boca e nos olhos, uma enorme alegria de viver.
E paramos.
Que um rosto destes, e o que ele transmite, não encontramos facilmente ao virar das esquinas do nosso quotidiano!
Pois Maria Custódia, analfabeta, que promete dançar muito no dia em que completar os 100 anos, passou toda uma vida de trabalho e miséria.
Filha da aldeia de Canadelo, Amarante, casou e teve dois filhos que criou sozinha a partir do dia em que o marido lhe fugiu. Há 57 anos.
Para sobreviverem, Maria Custódia percorreu, ao longo de vinte anos, diariamente, quase 40 quilômetros (seis horas diárias de caminhos) pela estrada que serpenteava a montanha entre Canadelo e Amarante. Trazia para a aldeia o correio e mercearia.
E passava fome.
Depois, contou ao repórter Armindo Mendes, passava os dias a carregar molhos de lenha para os fornos de cal. Subia e descia estas encostas muitas vezes por dia!
E passava fome!
Ainda hoje, continua a viver muito precariamente com um rendimento pouco superior a 200 euros por mês.
Tem já 94 anos e a vida não lhe dá sossego.
Agora, os proprietários da casita em que vive não a querem lá. Já lhe cortaram a luz para a obrigar a sair. E ela não tem para onde ir.
Mas foi sempre, e continua a ser, a alegria da aldeia!
Viveu todos estes anos como viúva. Uma tão prolongada ausência de notícias do marido levou-a, naturalmente, a concluir que tivesse morrido. Até que, na semana passada, apanhou um tremendo susto: recebeu uma citação, a primeira da sua tão longa vida, para se apresentar a tribunal em Vila franca de Xira!
Em Vila Franca de Xira? Não seria Amarante?
Não! Era mesmo em Vila Franca de Xira e o motivo não podia ser mais inesperado:
Desfazer o casamento!
O marido, afinal, não morrera e queria o divórcio! E ela foi reencontrá-lo 57 anos depois de ele lhe ter fugido!
E como reagiu Maria Custódia?
Foi um alívio, porque ele não merecia que eu fosse mulher dele. Disse-lhe isso no tribunal e nem me respondeu!
E eu não sei o que mais me reteve nesta notícia.
Se a genuinidade daquele sorriso inteiro que a foto nos revelou, se o desassombro com que esta Mulher revelou a sua integridade: Ele não merecia que eu fosse mulher dele!
Uma vida inteira a lutar com a vida não lhe quebrou nem a alegria, nem a dignidade!
Ora, se temos heróis de verdade, porque andamos nós a inventar falsos heróis?
Acabei de ler o resto do jornal. Fechei-o.
E, sem que me saiba explicar, apeteceu-me, de seguida, refrescar a alma na poesia de Torga.
E não é que me ficou a sensação de que, sem que eu o pressentisse, o poeta lera
comigo a história de Maria Custódia?
Que lindo dia
De poesia
Se pôs!
A manhã baça,
O jornal carrancudo,
E, de repente, tudo
Cheio de luz e graça!
E que não há milagres!
Há, mas são destes, que não provam nada…
É uma pena
Que a nossa alma seja tão pequena,
Ou já esteja ocupada.
Miguel Torga
Libânia Feiteira é licenciada pela Universidade de Viena em Línguas e Literaturas Moderna (variante de Português / Francês).
Fez o Curso Geral de Teatro e o Curso Superior de Educação pela Arte no Conservatório Nacional de Lisboa.
Viveu em Moçambique, na Alemanha, no Senegal, na Áustria e na Austrália.
Vive atualmente na Indonésia.
Colabora no GARATUJANDO com trabalhos literários na forma de “Contos”, - livro a publicar com o título “AQUI ENTRE NÓS”,- também com poesia falada, com trabalhos de criação artística e com Comentários sobre temas da atualidade.
Foto de Maria Custódia feita por Armindo Mendes para "Sol" em 2.008.
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