Lembranças amargas
Por Sierra
Foto: Domingos Peixoto
Capa do Jornal Extra que correu o mundo nesta semana.
Os milhões de famintos que tomam os quatro cantos deste país revelam quão fracassadas têm sido as chamadas políticas de amparo social.
Se os governos não conseguem nem fazer chegar comida à mesa dos que têm fome, é porque eles continuam falhando em muitas frentes.
Desde muito criança eu comecei a assumir o papel de leva-e-traz, de moleque de mando para uns e outros muitas vezes para ganhar alguns trocados. Assim, era raro o dia em que alguém da vizinhança ou gente da minha própria família não me encarregava de ir à venda da esquina, à mercearia, ao mercadinho, ao supermercado e à feira livre.
Muito cedo eu principiei a frequentar esses espaços comerciais e, não raro, pulando de um para outro em busca dos menores preços. E, dada a escassez e o pouco dinheiro, andar de lá para cá e de cá para lá era, por assim dizer, ao mesmo tempo que um aprendizado sobre as coisas práticas da vida, um real e às vezes dolorido exercício de sobrevivência, principalmente quando a grana não dava para comprar o que se queria e/ou do que se necessitava.
Morador desde sempre dos subúrbios da Região Metropolitana do Recife, eu sou do tempo em que as chamadas vendas e barracas e mesmo as mercearias vendiam também a retalho: se o sujeito não podia comprar uma lata de óleo de soja – sim, no meu tempo de infante óleo de soja era vendido em latas arredondadas e compridas -, levava a metade ou a medida de um copo americano; se não dava para pagar por um quilo de feijão ou de farinha ou de açúcar, levava a quantidade que o dinheiro desse.
A vida de quem vive com dinheiro escasso sempre foi e sempre será difícil; e, ainda mais, quando os preços correm a galope e nós fazemos de tudo para que ele renda o máximo que puder. Criança que adorava correr chão – deve ser por isso que até hoje, aos 47 anos, eu continue muito dado a andanças -, frequentemente eu saía comprando uma coisa aqui e outra ali tentando de todas as formas conseguir fazer com que o dinheiro desse para comprar o que estava faltando em casa. Se alguém dizia: “Olha, a bolacha tá mais em conta lá em Seu Doge”, eu ia até lá. E se um outro dissesse: “Sierra, no Mercadinho Silva tá vendendo arroz num preço bom danado”, eu ia até lá também, mesmo que as distâncias entre os estabelecimentos fossem enormes e eu fosse levar um grande tempo para percorrê-las. Não havia outro modo de sobreviver. Mainha, mãe solteira, tinha de dar conta de aluguel, de comida, de tudo, enfim; e eu logo cedo comecei a compreender isso e as dificuldades da vida a cada vez que preparava o fogareiro com lascas de madeira e papel para acender o carvão ou então quando usava uma espécie de fogãozinho apropriado para receber álcool, meios aos quais recorríamos quando não tinha dinheiro para comprar um botijão de gás.
Tempos difíceis. Amargos. Ruins. Perversos. Tempos de desamparo social e de ausência de rede de proteção governamental que engrossavam as filas da pobreza e da miséria dos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sou um dos filhos desses tempos de desamparo governamental. Sou um entre os milhões de brasileiros que, à época do maldito desgoverno do presidente José Sarney, ia com seus caraminguás ao supermercado e se deparava com grandes espaços vazios nas gôndolas e prateleiras. Inconformados com o tabelamento de preços, produtores de alimentos simplesmente não produziam – e, se produziam, preferiam vender no mercado clandestino com preços nas alturas. Foi um terror aquele tempo.
Resgatei essas lembranças ruins por esses dias, temendo que, dada a alta dos preços de vários itens da cesta básica, a inflação volte a sair em desabalada carreira e, assim, consuma a maior parte dos nossos ganhos e lance na pobreza e na miséria absoluta mais uma considerável porcentagem da população, gerando, por sua vez, uma série de outras degradações como o aumento da violência e das práticas criminosas, porque, como dizem os estudiosos, na esteira do desemprego, da pobreza e da miséria proliferam outros males sociais.
Os efeitos da inflação, sobretudo nos preços dos alimentos, podem ser vistos não só na alta dos preços em si dos produtos, como também nas artimanhas – artimanhas previstas em lei, diga-se - que algumas indústrias fazem para não encarecer ainda mais o que elas vendem, que é recorrer ao expediente de diminuir o peso do produto na embalagem; ou seja, pagamos mais caro para consumirmos cada vez menos. Gente vasculhando lixeiras e depósitos de descartes em busca de restos de comida é, talvez, a expressão máxima do desamparo social e governamental.
Há quem prefira sempre fazer de tudo para não se lembrar das privações e dos horrores que vivenciou. De minha parte eu faço de tudo para não esquecê-los.
In A Cidade e a História.
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