O diário de uma desilusão
Do uísque com o chefe da Globo até o dia em que o
PT "rompeu o mandamento da cosa nostra"
Por César Benjamin*
Retornei do exílio em 1978, antes da Anistia, animado com a retomada do movimento operário e o fortalecimento do movimento democrático no Brasil.
Como muitos da minha geração, dediquei meus melhores esforços, nos anos seguintes, à construção do Partido dos Trabalhadores. Fui membro da direção nacional.
A primeira eleição presidencial direta depois do regime militar, em 1989, encontrou-me na linha de frente.
Chorei o trauma de uma derrota politicamente fraudulenta.
Nos dias seguintes ao resultado, junto com cerca de 6 mil militantes e simpatizantes do PT, fui para a porta da Rede Globo, no Rio de Janeiro, protestar contra a edição do último debate entre Lula e Collor, a exibição de sequestradores do empresário Abilio Diniz com camisetas do PT e a manipulação de uma mulher pobre e ressentida, que havia recebido dinheiro para macular a vida pessoal do nosso candidato.
Viajei em seguida para São Paulo, onde encontrei Lula.
Tivemos um diálogo curto, que nunca esqueci.
Lula me disse:
- "Cesinha, sabe quem me ligou nesses dias? O Alberico, da Globo. Jantei com eles anteontem. Derrubamos litros de uísque. Eu pedi que não se preocupassem, que estava tudo bem entre nós. Não vou brigar com a Globo, não é, Cesinha?"
Apesar dos anos passados, a citação é textual.
Fiquei muito perturbado ao saber, pelo próprio Lula, que, no mesmo dia em que a militância do PT protestava na rua, ele "derrubava litros de uísque" com a direção da emissora que, a nosso ver, e na visão dele também, o havia agredido e humilhado, reiteradamente, nas semanas anteriores.
A conversa serviu, para mim, como um sinal amarelo sobre o caráter do nosso líder.
Mas sua imagem só desmontou definitivamente em 1994, quando bancos e empreiteiras começaram a financiar pesadamente o PT, à revelia da direção nacional e da militância, mantidas na ignorância dos novos esquemas paralelos.
Começou então a ascensão de uma "esquerda de negócios", fenômeno novo em nossa história.
Incentivados e promovidos a cargos de direção, os "operadores" ajudaram a consolidar o poder da Articulação no PT.
As relações internas foram fortemente contaminadas pela circulação de dinheiro, em geral para financiar campanhas e garantir lealdades.
A honra de pessoas e o cadáver de Celso Daniel ficaram no meio do caminho, mas Lula chegou aonde queria chegar.
Depois de vários anos de sucessivas demonstrações de vassalagem, foi ungido.
(Brizola, que enfrentou a Globo em defesa de Lula, foi destruído.)
O PT levou para a Presidência da República as mesmas práticas testadas e aprovadas na luta interna, mas agora em escala muito ampliada.
Os operadores passaram a operar freneticamente, aliás em ambiente propício.
O que já foi divulgado é uma pequena fração dos malfeitos.
Lula encontrou pronta uma forma espúria de organizar o poder político da Nação e, em vez de lutar para alterá-la, como era sua obrigação política e moral, adaptou-se a ela.
Forças de natureza supranacional, representantes dos nossos credores, continuaram a ocupar o Banco Central e o Ministério da Fazenda; a partir dessas posições, manejando as políticas monetária, cambial e fiscal, bem como a execução do Orçamento, elas controlam e subordinam a ação de todo o Estado brasileiro.
O Legislativo continuou a ser o espaço onde se expressam demandas de natureza subnacional, negociadas caso a caso, na margem, de acordo com a necessidade de composições políticas em cada momento.
O aparelho de Estado continuou a ser tratado como butim.
E o povo pobre continuou a receber as migalhas das políticas compensatórias.
Nesse arranjo, nenhuma instância cuida seriamente dos interesses da Nação, que por isso permanece à deriva.
É assim que se faz política no Brasil.
A Presidência da República, porém, é uma instância muito complexa, para onde convergem todas as demandas e interesses. Na ausência de um projeto qualquer, inexiste um eixo ordenador das negociações, de modo a impor limites aos apetites de cada parte.
Lula e o PT submergiram na política do varejo, atendendo ou deixando de atender a cada interesse conforme as pressões do momento, cada vez mais ponderadas pela grande meta da reeleição, a única que de fato os interessava.
Com o tempo, o governo foi se tornando inconfiável para todos.
E cometeu o erro fatal: deixou de honrar a palavra empenhada, rompendo assim o primeiro mandamento de qualquer cosa nostra. O deputado Roberto Jefferson deu o troco.
Fala-se agora em reforma política.
É mais um blefe.
O problema não é de novas regras formais, feitas, como as outras, para ser burladas, mas de conteúdo.
O esquema atual é sustentado por uma aliança paradoxal, que vem sendo renovada a cada eleição, dos mais ricos, que comandam sempre, com os mais pobres, que apenas votam a cada quatro anos.
Essa aliança tem como alvo preferencial o mundo do trabalho e suas instituições.
Os direitos associados ao trabalho, jamais universalizados, são denunciados como privilégios, num país em que os verdadeiros privilegiados são invisíveis à grande massa da população.
O ressentimento popular contra a desigualdade é usado para destruir as ilhas de cidadania, que deveriam ser justamente os pontos de Arquimedes onde a Nação poderia apoiar suas alavancas para desenvolver-se, puxando os que ficaram para trás.
Collor inaugurou essa aliança no terreno simbólico.
Fernando Henrique deu-lhe seqüência, utilizando-se do Plano Real, que permitiu uma convergência momentânea de interesses tão díspares.
Hoje, Lula é quem faz a ligação, que agora é simbólica (pelas origens dele) e material: oferece por ano R$ 150 bilhões em juros aos mais ricos e R$ 10 bilhões, pulverizados, em Bolsa-Família aos mais pobres.
Cumpre bem esse papel.
Não será atingido por nenhuma investigação.
Está blindado.
Mas é refém.
Triste destino, o do PT: em 1989, no discurso e na prática, apontava que a aliança correta, aquela capaz de retirar a Nação da crise, tem de ocorrer entre o mundo do trabalho e da cultura, de um lado, e os mais pobres, de outro, com a subseqüente reforma de instituições e costumes.
Em 2002, tornou-se um instrumento da aliança espúria que mantém o Brasil em crise crônica.
Continuará a existir como uma legenda a mais na política institucional, cada vez mais distanciada da vida do povo.
Tudo se tornou melancólico e patético para quem, algum dia, sonhou em mudar o País.
Estamos assistindo ao fim de um ciclo na existência da esquerda brasileira, um ciclo que não deixa legado teórico, político ou moral.
Resta saber como e quando ela se recomporá.
Seja como for, o PT pertence ao passado.
* César Benjamin é editor e autor de A Opção Brasileira (Contraponto, 1998) e Bom Combate (Contraponto, 2004)
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